sábado, 26 de março de 2011

Portugal


Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!

*

Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para o meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...

Alexandre O'Neill
1924-1986

sábado, 5 de março de 2011

Marchamos


Marchamos
contentes ou tristes
marchamos
sentados no vazio da luta
marchamos
sempre e sempre
marchamos
sem saber para onde
se para a saudade ou para o arrependimento
não sabemos.

Mas marchamos
sempre parados
marchamos
sem rumo ou sentido
marchamos
sem saber porquê
se porque é demais ou já é de menos
não sabemos.

Mas marchamos
sempre ignorantes
marchamos
sem motivo nem vontade
marchamos
sem saber contra quem
se contra a indiferença ou contra a memória
não sabemos.

Somos indiferentes.
Sem saber.
Marchamos.

E se estiver a chover,
ficamos em casa.

Quinta-feira, 20 de Fevereiro de 2003
SAC

quarta-feira, 2 de março de 2011

Parece


Quando me levanto
e é tudo igual
mesmo a esperança,
mesmo o amor
sempre invisível,
sempre sozinho...

Quando me lembro...
e é tudo igual
mesmo a praia,
mesmo o Sol
sempre amarelo,
sempre distante...

Quando me lembro
que é tudo igual
mesmo a revolta
sempre inútil,
sempre pouca...

Sempre que me lembro
que sou o mesmo
e o sorriso
e o meu olhar...

Quando me lembro
que é tudo igual:
as ruas, as árvores,
as estações de metro,
os metros,
a espera e o seu encanto,
o atraso,
a desilusão,
o desencanto...

Quando me levanto
e é tudo igual
mesmo o teu beijo,
mesmo o teu amor
e teu desejo...

escrevo espelhos
e tudo parece diferente.

Sábado, 24 de Junho de 2000
SAC

terça-feira, 1 de março de 2011

Encontro


Estar contigo
a sós
é uma saudade
de não ter saudade,
é um medo
de não ter medo,
é uma verdade
de não ter verdade,
porque me beijas.
Porque me perco.
Porque contigo
não existe espaço
e o tempo...
O que é o tempo?

É a perdição
de nos termos encontrado.

Quinta-feira, 22 de Janeiro de 2004
Campo Grande – FDL – sala 11:04