segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Chove...

Chove...
E eu estou só...
Chove...
E sinto-me acompanhado...

Apenas por mim,
pela minha infância,
minha inocência,
velhos tempos...

Velhos tempos estes,
em que me lembro
de outros tempos,
outras vontades...

Lembro-me de mim.
De mim e mais alguém.
Lembro-me do deserto.
De mim e do deserto.

Nada tenho, apenas areia.
Nada vejo, apenas o céu.

Quarta-feira, 12 de Maio de 1993
SAC

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Buscando Algo em Alguém


Levando na palma da mão uma vida sozinha...
Trazendo na ponta do pé uma alma vazia...
Deixando na beira do rio um olhar tão meu...

Um olhar que só pararia se olhasse o mar.
Um olhar que só morreria se parasse no fundo
e se esse fundo fosses tu
e se este mundo fossemos nós,
morreria com prazer o meu olhar,
morreria com prazer ao teu passar,
morreria se a morte fosse doce,
morreria se a morte fosse... o que eu procuro.

Mas não é.
Morto já estou eu.
Quem leva sozinho uma vida sozinha...
Quem traz no corpo vazio uma alma vazia...
não pode estar outra coisa senão morto.

Mas sou eu. Sou eu e não o meu olhar
que fui deixado, à beira do rio,
à beira do nada,
no meio do tudo,
desamparado,
procurando o mar,
dentro de alguém.

Sábado, 17 de Janeiro de 1998
SAC

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Borbulhando num Café


Desta vez tenho tempo
para escrever o que me apetecer.
Desta vez até tenho tempo
para esquecer o que te apetecer,
para dominar a minha tristeza,
para dormitar na tua solidão.

Desta vez tenho até espaço
para te dar um abraço,
apertar-te e cingir-te num laço,
Lua que és de mim pedaço
diz-me: o que é que eu faço?

Finge. Continua a fingir
que és tu e mais ninguém.
Salta. Continua a saltar
mais alto que o mundo dos outros.
Corre. Continua a correr
do comboio do azar.
Corre. Não te deixes apanhar.

Mas dá. Dá de ti tudo,
tudo aquilo de que não,
de que não precisas por ser,
por ser demasiado pesado.
E finge. Continua a fingir
que és tu, que és tu e mais ninguém.

Quinta-feira, 2 de Outubro de 1997
Santos - Lisboa

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

A Rebeldia de Conseguir


Num fogo escondido arde a esperança
em ondas de mar que não torna.
Deita-se o barco quando nasce
e o que lhe acontece ninguém sabe.

Passamos a vida a tentar
fazer o tempo ao contrário,
fechar portas, janelas e alçapões
e olvidar o que vimos p’ra lá deles.

Passamos a vida a tentar
esquecer, fechar, morrer
aquela parte de nós que não queremos
sem que cheire ou apodreça.

Somos larvas dessa tentativa
procurando a saída e um ar que respire.

Passamos esta vida a tentar
que gostem de nós ou de uma
ou outra parte que foi feita para isso,
que se lembrem, que nos abracem,
que se esforcem, que nos sintam,
que nos perdoem, que tentem.

Tentamos a vida que passa
E a vida que fica.
Tentamos a que não passa e não fica,
aquela outra que não existe,
esta aqui tão perto, tão próxima,
tão quente, desejosa, ansiosa
mas que nunca nos toca.

E nessa tentativa tão pungente,
nessa procura tão ardente
e quantas vezes lancinante
que tentamos ingenuamente
fazer crer que não existe,

Somos como um músico
que ensaia sem partitura,
que lima as unhas nas cordas
como se baloiçasse lá de cima
como trapezista sem rede.
O músico falha, o músico tenta.
O músico tenta, o músico falha.
E novamente tenta.
E novamente falha.
Até falhar menos.
Sempre menos em cada tentativa.

Mas só será um bom músico
quando se aperceber
que a música que executa será sempre uma falha
e que a tentativa será sempre a sua alma.

A vida é uma folha em branco
sem linhas e sem notas
onde a perfeição é impossível.

E nós, somos como músicos
que são como trapezistas
numa corda bamba.

Mas nesta vida podemos escolher.
Podemos render-nos à imperfeição
ou podemos representar em nós
a rebeldia de tentar,
que é neste mundo
a rebeldia de conseguir.

Novembro de 2003
Benfica - Lisboa

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

A Rosa dos Santos


Apontavam para mim os teus seios.
Dançavam falando teus lábios
tão quentes e... tão cheios
que apertavam os meus olhos de desejo.

Saltavam teus seios tão fartos
quando entravas onde eu estava
e entrava contigo eu onde estavas tu,
que já Deus não importava,
que já sorte não precisava,
que já Sol queria não nascesse.

Voavam teus cabelos soltos,
Dançava teu corpo nu com roupas,
enquanto bebia frutos que pendiam de ti
e lançava meus olhos aflitos
e dormia em momentos finitos
e passava por eles sem passar.

Bebia teus lábios bonitos
e enquanto os bebia
perdia-me em ti
e perguntava:
porque te chamas imaginação?

Terça-feira, 16 de Maio de 1997
SAC

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Mentes de Saudade


Num cacho de persianas
se dá o mote para uma cidade.

A cidade esconde-se, sussurrando,
como um menino que tenta,
na sua ingenuidade doce,
desprender os pássaros da sua alma
conservando-os numa gaiola.

Não é de barro, mas parece.
E as lágrimas do menino que não vemos
são de louça branca.

Acontece.
As suas lágrimas são como uvas
que deslizam e se tornam
menos de louça,
menos de branco,
caem maduras tintas
e deixam-nos embrulhados na nossa saudade.

Seremos o menino, a cidade, os pássaros ou as uvas?

Lutaremos pelas persianas, pelos gestos e pela luz que entra?

Seremos porventura toda a luz que não entra,
todo o pássaro que não voa,
toda a alma que não dança,
todo o ventre que não germina.

Seremos de certeza
Ícaro que voa,
menino que se esconde
na sua imaginação
e no brilho da sua cidade.

Sexta-feira, 13 de Novembro de 2009
Alfragide

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Desabafo


Embora seja corroído por dúvidas
sou feliz...
Mesmo sabendo que sou um vale de lágrimas.
Mesmo sabendo que o nada que procuro é mesmo nada.
Mesmo sabendo que tudo o que encontro é mesmo nada.
Mesmo sabendo que quem me procura nunca me encontra...

Estou perdido de mim mesmo...
Procuro-me num jardim,
mas não me encontro.
Levo as mãos à cabeça
e quando as mãos se juntam
apercebo-me que não estou lá,
nem nunca estive,
nem nunca estarei
nesse jardim que é a felicidade...

No entanto sou feliz,
mesmo sabendo que sou uma montanha,
de vales,
de lágrimas.

Terça-feira, 28 de Abril de 1998
SAC

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Onde pertenço


Amo-te tanto
e tão somente
quando te sinto longe
no mundo dos sonhos
dormindo no meu peito.

Teus olhos vagueiam
debaixo das pálpebras
como barcos pequenos, perdidos
numa grande tempestade.

Mas teus olhos semicerrados
são como um duplo pôr-do-sol
donde refulge uma luz intensa
que ondeia reflectida
nas velas do meu coração.

E teus olhos abertos
são faróis que me guiam
sem medos, sem âncoras
na correnteza suave das ondas do amanhã.

E nessa promessa me perco.
E nessa maré me deixo levar.
Boiando na certeza do teu amor.
Bolino no teu corpo
procurando nessa luz imensa dos teus olhos
a tua alma, o meu mar.

És o meu lugar.


Sexta-feira, 29 de Outubro de 2004
S.A.C.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Mendigo de papel


Encostado a uma parede estou.
Deixo-me ali encostado e saio de mim.
Vejo-me e confundo o meu rosto com a parede.
Está frio, despido e com os olhos fechados.

Parecia abandonado e estava-o de facto.

Faminto de vida, pedinte de força,
aspecto de nada, silêncio de tudo,
largado no precipício, estropiado mas não morto,
lentamente sigo o meu caminho
como todos os outros... precipícios.

É verdade. Sou mendigo de papel.
(ou serei papel de mendigo?)

Quinta-feira, 2 de Outubro de 1997
Santos - Lisboa

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Ainda Bem


Um chupa-chupa amarelo,
um relógio sem ponteiros,
um televisor por acender,
um isqueiro sem cigarro,

um automóvel descapotável,
uma nau dos descobrimentos,
uma caneta cheia de tinta
e um papel cheio de branco.

Um banco com dinheiro
e sem ninguém sentado em cima,
uma toalha azul numa mesa,
uma mesa num bar castanho.

Um tijolo numa parede sozinha,
uma parede desenhada num guardanapo,
um guardanapo nos lábios de uma mulher.

Ainda bem que posso ser tudo isso, em pensamento


Quinta-feira, 2 de Outubro de 1997
Santos - Lisboa

A Perfeição da Mulher


A perfeição da mulher,
a força da Natureza,
o encanto de um sorriso
e o fascínio da beleza.

São lábios de beijar
aqueles que tens e eu desejo.
São lindos teus cabelos
de olhar, tocar e encantar.

Os olhos doces como o mel
derretem como manteiga,
sabem como morango e...
embriagam como champanhe.

O olhar. Esse elixir
de vida, Lua e sedução
que tanto quero
e tão pouco tenho,

será melhor não o beber.
Ficar só quem só o olha
é sorte, fado e destino
de quem se mira ao espelho e não se vê.

Mãos de fada encantada,
voz terna de sereia,
de princesa cinturinha
e um pé de graciosidade.

O outro corpo é de rainha,
deusa-mulher elegante,
sensual, sexy, formosa
como Afrodite romana.

Já com Vénus helena
é Lua da Lua em que estou
e parecendo que não
é noite que se faz dia,
é Sol que aparece e desfaz
os sonhos... em realidade.


Terça-feira, 21 de Novembro de 1995
SAC

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

A Espera


Espero por ti Lisboa
como se esperasse pela felicidade.
Espero por ti nas tuas ruas
como vivo todos os dias esta saudade.

Saudade, doce saudade
De nada esperar.

Sábado, 7 de Outubro de 2006
Restauradores - Lisboa

sábado, 3 de outubro de 2009

A Mesa e o Tampo


Ali a mesa estava.
À nossa espera.
Esperávamos nós por ela, sem saber.
E que pode acontecer para nós no seu tampo,
que não seja a ansiedade de nos revermos nela?

Gargalhadas, risos, pétalas de mar
e grãos de chá de flores.

O reencontro na distância e no prazer,
de nos vermos num tampo,
qual espelho?
qual vidro?

Perdemo-nos?
Perdemos-te?

Sim , até voltarmos a sentar-nos àquela mesa.
O tampo, somos nós.


Segunda-feira, 27 de Julho de 2009
São João da Talha
e algures no Facebook

Dubia Aeterna ou O Carteiro Morreu Quando Voltava


Serás tu... também
ou serei apenas eu.

Serei apenas eu a imaginar amar.
Serei apenas eu a amar o imaginar...

Serão os meus olhos que te fazem mais bonita?
Serão os teus mentirosos e ingratos?
Serão os meus ingénuos, mimados que fazem fita

quando te não vêem,
quando te não olham,
quando te não espreitam

fazem-se tristes, melancólicos,
fazem-se cegos, hiperbólicos,
fazem-se caídos, como lágrimas,
trago-os fechados, como cofres.

Guardam-te lá dentro
a dizeres o meu nome.
Guardam-te lá dentro
a pensares talvez.

Porque existes tão bela?
Porque existes tão formosa?
Poderias ser bela e formosa,
mas horrorosa na minha mente...
mas a mente não me mente
e quem se sente demente sou eu.

E pergunto-me vezes sem conta
se por uma hora que duvidasse existir,
por minuto que esquecesses a seguir,
por um só momento de loucura,
por segundo que se esgotasse,
por vácuo escondido na tua candura
de tempo diluído que parasse,
me amaste alguma vez.

Teus olhos não mentem,
teus olhos não choram, por mim,
teus olhos não vêem,
teus olhos não olham.

Se mentissem, não te amaria.
Se chorassem, eu os secaria.
Se vissem a luz que se acende
dentro do meu coração
quando os vejo...

Se vissem a grade que me prende
à tua sedução
e ao meu desejo...

Se olhassem, mas não olham.
Se olhassem, mas não vêem.
Se olhassem diriam que sim.

Que sim à vida e à coragem,
que sim à emoção e à verdade,
que sim mesmo que estivesse já morto.
Que sim, que eras fidelidade,
que sim, que eras tua e assim minha,
que sim, que eras e não ilusão.

Que não era só minha a ilusão,
que não era só meu o desejo,
que não eram só minhas as tuas palavras,
que não eram só meus os teus gestos
que prometiam a vida eterna,
que prometiam eterna esperança...

Que não, que não era eu,
que sim, que tu existias,
que sim, que as palavras eram tuas,
que sim, que eram teus os teus gestos...

diziam carinho e conforto,
diziam presença e ambição,
diziam piedade por um morto,
escreviam que me amavas,
mas o carteiro morria quando tu voltavas
a mentir, ou a dizer a verdade,
a sofrer, ou a esqueceres-te de mim,
a chorar, ou a limpá-las de tanto rir.

E os teus gestos diziam
não sei mais que saudades
e escreviam que me amavas,
mas o carteiro morreu quando voltava.

E os teus gestos diziam talvez.
E os teus olhos diziam que sim.
Mas o carteiro disse-me que não.


Quinta-feira, 8 de Agosto de 1996
SAC

sábado, 26 de setembro de 2009

Alguém que queres que diga


“Quem é por detrás da porta?”
É a tristeza assombrada
que bate com a tua mão.
É a tua alma que brada
palavras e versos em vão.

“Quem é por detrás da porta?”
Não abras que é ladrão,
ladrão de amor e carinho,
de conforto e rosmaninho,
erva-doce e castanhas no fogão.

“Quem é por detrás da porta?”
Amigo não queiras saber,
não queiras saber quem é
aquele que não quer saber
quem tu és, quem queres ser.

“Quem é por detrás da porta?”
Descansa não é ninguém.
Não sente, não dorme, não se cansa,
não se furta, não vive e não lhe dói
o que de vida são tuas lágrimas.

“Quem é...?”
Por detrás da porta?
Alguém muito especial
que não te quer.
Alguém que te olha
sem te ver.
Alguém que só é
se quiser.

Por detrás da porta amigo
está um mundo à tua espera,
está um fundo sem poço no cimo,
está alguém que bate com coragem.


Quinta-feira, 5 de Dezembro de 1996
SAC

sábado, 19 de setembro de 2009

Carmen


É dada à Natureza por Deus
e por seus dedos vales desenhados,
cobertos de veludos seus
que são os musgos orvalhados...

e por suas mãos colinas formadas,
mimadas pela suavidade pétala rosa...
nos seus braços são protegidas
as boninas que encantam a formosa...

Foi dada a Natureza ao Homem,
que soube dedilhar as faldas...
e abrindo montanhas,
escorregando pelas encostas,
enterra o arado nas entranhas
da areia p`la maldade e come o fruto
onde corre o rio que seca a sede,
que despe a fome ao mais bruto,
que traz a Lua ao diminuto
e leva o sonho ao tão arguto.

Que estranho violino realiza
tamanha afronta, tanto prazer?
Que estranhas cordas, espirais, ondas
encantam na ilha o enfurecer?

Tesouro mais bem guardado,
que tem na melhor guarda,
com medo de o perder,
a eterna, viva, liberdade
dos olhos, da mão e do prazer.

(Tesouro)
que mata mais sede que água,
que morre mais tarde que tudo,
que desfaz sempre toda a mágoa
e torna o sofrimento mudo.

Mais suave que a própria seda,
mais funda que qualquer ferida,
mais próxima que muita perda,
mais sentida que vivida.

Mais preciosa que diamante,
mais delicada que a rosa,
mais rica num instante
que a esmeralda por toda a vida.

Pelo doce mel de seus lábios
encantado, por seus cabelos
escondo o seu olhar nos olhos meus,
para que não me faça tal o Fado:
que me perca e logo diga adeus.

Sexta-feira, 5 de Maio de 1995
SAC

sábado, 22 de agosto de 2009

É Dia!

É dia!
Acordei sem abrir meus olhos.
Dirigi-me à janela do quarto
e lá flutuava a bruma aos molhos
sem que o céu ficasse farto.

Cobri-me então com um roupão,
que fazia frio no parapeito,
quer o fresco traria a disposição
e o Sol, agora rarefeito.

Deixei-me vestir por completo
por ondas de crepúsculo rosicler.
Qual aurora de muito perto,
alvorada florescida que se quer.

O pão e a manteiga derretida,
o café com leite e a colher,
como em casa favorecida,
como em casa de mulher.

Com o jornal da manhã
e as fenestras e eu
decorados no amanhã,
cada um com o seu.

O Sol entranhava no chão
e em mim, ossos, pele, cabelo.
Arrepiava o pêlo até à mão
e meus olhos fechavam como um elo, no meio da escuridão.

Já na rua descoberto,
o Sol fazia sua aparição
no meio do tecto, parecia quieto,
parecia, no fundo do coração.

Já no banco de um jardim,
estatelado estava eu,
com rosas, perfume e jasmim
do coração que mas deu.

Lá no alto escurecia
o céu que o Sol deixava
e a dor do amor que padecia
toda a cidade enlutava.


Do dia se fez a noite
e do amor ardente gelo
não quer dizer que pernoite
para sempre em seu cabelo,

não quer dizer que anoiteça
sem o derreter e também
não quer dizer que aconteça
o que faça acontecer.

Que esqueça na escuridão
a claridade de seus olhos,
Que olvide o embrião
desta minha paixão de escolhos.

Que se deslembre a paixão,
que cesse o fogo, que nasce o não.

Que se enterre o amor se tanto se possa fazer,
pois que este viverá para além do falecer.

Que morra aquela no fumo de cinzas
e que daquele brote uma flor, transformada pela terra,
transformada pela dor.


Março de 1995
SAC

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Nesta Caneta em que me Deito

Nesta caneta em que me deito
há milhares de histórias por contar,
há cidades de luzes por acender,
há globos terrestres por girar.

Há também gatos que vão crescer.
Há também miados que vão cessar
e fados que te encantarão
e deuses que te escolherão

dentre as flores que se encolhem,
dentre as aves que só fogem,
dentre as luas mais distantes,
dentre os lábios que os beijam
nos seus tronos onde descansam
a paz, a eternidade e os instantes.

Dádiva ensombrada pelo mundo,
és delícia enfarinhada por Deus,
és cativa da Lua e do céu,
és toalha que abriga o mendigo,
és dança que dança no silêncio,
és chuva que chove no infinito.


Segunda-feira, 21 de Fevereiro de 1997
SAC

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Foste embora


Quando entraste naquela sala
perdeste o brilho e a luz
perdeste o sorriso e a força
perdeste-te e a mim também.

Quando te foste embora
perdeste a lucidez e o nada,
perdeste tudo e a razão,
perdeste a tua vez e a minha.

Quando rodaste a maçaneta
percebi que era o fim
e o princípio de um mim
e que não era de ti que tu gostavas.

Quando bateste com a porta
percebi que tinhas deixado entrar
a tristeza e a solidão,
a fraqueza e a negação,

para além do desespero,
para além da faca e do revólver,
para além de mim.
Sim, esse agoniante eu que voltei a ser.

Quando te foste embora
percebi que era o fim
para além do desespero,
para além da faca e do revólver,
para além desse eu agoniante que voltei a ser.

Quando te foste embora
percebi que era o fim
e que não era de ti que tu gostavas
nem de mim, nem de mim.


Quarta-feira, 24 de Outubro de 1996
SAC

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Os Sonhos

Os sonhos são lindos, florões
mas que furam feitos balões.
São intermináveis sacarinas
que se desfazem como serpentinas.

Os sonhos são almofadas gigantes
em saúde e sorte marchetadas,
mas que agora distantes
não passam de moedas douradas.

Os sonhos!
O que de mais real têm os homens,
porque a realidade é a verdade
e os homens são falsidade.
Eterna falsidade e falsa eternidade.

Queira Deus e o Homem que sim,
pois não aguento, tanto tempo assim:

“- Faredes o que mandado vos é.”
Que sim. Que sim.
Digo e redigo sem abrir os olhos,
pois que mandado me é e mandado me foi e mandado me será

viver sem ver
a ver se não via
o que realmente havia
antes de escurecer,

ver sem viver
e a viver recebia
a cova que pedia
sem a ver viver.

Os sonhos são belos,
enfeitados de prazer,
perfeitos como elos
e rodeados de luar
e marchetados de canções,
misturados, conchas e mar,
como num poema de Camões.

Os sonhos são lindos.
Lindos, lindos de morrer.
Os sonhos são lindos.
Lindos, lindos até morrer.

Os sonhos estão acordados.
Nós é que estamos adormecidos.

Quinta-feira, 10 de Agosto de 1995
SAC

terça-feira, 14 de julho de 2009

Lembro-me

Lembro o teu sorriso
como pétalas a desabrochar
num jardim plantado a crescer...
como se fosse Primavera
num coração onde a maldade...
fosse como... desaparecer...

Lembro a tua mão
como de princesa a adormecer
linda num castelo de jardins...
como se fosse um tesouro
guardei-a na minha saudade...
enchi-a de festas e jasmins...

Lembro o teu corpo
como luz a florescer
num longo vestido escuro...
como Sol que encandeia
a respiração dos imortais...
que morrem... por um segundo...

Lembro os teus olhos
como mel a derreter
num boião de açúcar...
como janelas para a bondade,
para a ternura, para fora daqui...
para dentro de ti...

Mas também os lembro
como lágrimas a chorar
num mar de ondas ao contrário,
numa noite de amizade,
num carinho de verdade...
como se fosse Primavera
num coração onde a maldade...
fosse como... desaparecer...

Sexta-feira, 1 de Novembro de 1996
SAC

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Em que Vaga Chegarei Até Ti

Em que vaga chegará o meu poema?
Numa vaga de sorte, pela manhã
quando as pegadas na praia ainda não são tuas...

Em que vaga chegará o meu carinho?
Numa vaga de tempo, pela tarde
quando as pegadas forem sonhos que procuras em vão...

Em que vaga chegará o meu amor?
Numa vaga perdida, pela noite
quando as tuas pegadas já desapareceram,
quando as flores nos jardins já murcharam,
quando eu adormecer... para sempre...

Quarta-feira, 28 de Agosto de 1996
SAC

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Assim se Faz Um Velho

Assim se faz um velho:
canudos e livros esquecidos,
paredes e lamentações vãs,
salas e anfiteatros desguarnecidos,
tinta de canetas muitas e muitas cãs...

Comboios e autocarros apinhados,
descidas que já subi,
vidas que já vivi,
subidas donde já caí,
vendedores e mendigos calados...

Quilómetros percorridos... porque os fizeste?
Furiosas mulheres... por quem me tomaram?
Lábios de relações inférteis... porque os beijaste?

Tenho o rosto macerado de farsas,
os meus olhos são buracos por onde entraram muitos outros,
a minha boca está fechada, pejada de cicatrizes,
pela minha testa passaram centenas de arados
e as minhas orelhas são covas abertas por todos.

e assim as pessoas
e assim elas, aquelas
aponto com dedo acusador.

e assim me fazem velho:
beijos e beijos esquecidos,
festas e carinhos guardados
nas gavetas por latidos
de cães e sentimentos anafados

pela gula da inconsciência,
pela ingratidão do esquecimento,
pela frieza de um fingir,
pela conversa que não o é,
pela cobardia do não gostar,
pela triste sinfonia de perder uma pessoa
por deixar de sentir um sentimento
por viver do passado, do medo e não do momento.

e assim as pessoas
e assim elas, aquelas
aponto com dedo acusador:
estou velho por causa delas.


Quinta-feira, 18 de Outubro de 1996
SAC

Amor


O amor é o suicídio lento da alma
de quem se mascara com a essência,
de quem se esconde da insensibilidade,
de quem se despe quase com... displicência,

de quem liga ao que dizes sem querer,
de quem liga ao que queres sem dizer,

de quem se droga com um rosto,
de quem se embebeda com um sorriso,
de quem se não contém nem contenta com um corpo,
de quem só quer um pequeno paraíso.


Terça-feira, 28 de Janeiro de 1997
SAC

Alguém que queres que diga

“Quem é por detrás da porta?”
É a tristeza assombrada
que bate com a tua mão.
É a tua alma que brada
palavras e versos em vão.

“Quem é por detrás da porta?”
Não abras que é ladrão,
ladrão de amor e carinho,
de conforto e rosmaninho,
erva-doce e castanhas no fogão.

“Quem é por detrás da porta?”
Amigo não queiras saber,
não queiras saber quem é
aquele que não quer saber
quem tu és, quem queres ser.

“Quem é por detrás da porta?”
Descansa não é ninguém.
Não sente, não dorme, não se cansa,
não se furta, não vive e não lhe dói
o que de vida são tuas lágrimas.

“Quem é...?”
Por detrás da porta?
Alguém muito especial
que não te quer.
Alguém que te olha
sem te ver.
Alguém que só é
se quiser.

Por detrás da porta amigo
está um mundo à tua espera,
está um fundo sem poço no cimo,
está alguém que bate com coragem.


Quinta-feira, 5 de Dezembro de 1996
SAC

sexta-feira, 19 de junho de 2009

A minha Primeira Bebedeira (o lado negro da palavra viver)

Que me lembre esta é a primeira

que me deixa no chão sempre em pé,

a andar demasiado depressa,

demasiado bem e demasiado até,

para quem anda para todo o lado

sem nunca perguntar: porque é?


Que me lembre já dura há muito tempo.

Tempo demais para cá e para lá

a correr demasiado inconsciente,

demasiado doente e demasiado atado,

para que do outro lado me vejam

sem nunca perguntarem: porque será?


Já devem ter percebido...

a bebedeira é de sobriedade.

Sim, não estou a cair para o lado,

p’ra trás, para a frente, na diagonal,

na vertical, em cima da mesa para o outro lado.


Sim, não estou a cair de bêbado

para cima dos outros e de mim,

sem saber que as maçanetas se rodam,

sem saber que as portas se abrem,

sem saber que as persianas só fecham para baixo,

sem saber que o coração é um casaco que se veste.


Estou bêbado, a cair, de andar direito

por cima dos outros, por cima de mim.


Estou bêbado por saber

que às vezes as maçanetas enferrujam,

que às vezes as portas não abrem,

que as persianas abrem para cima,

mas também que as nuvens que tapam o Sol

não dependem de nós,

nem o calor, abafado,

que nos deixa deixar o casaco

no armário, fechado...


A minha bebedeira é a vida.

Tento viver como os outros.

Tento dormir como os outros.

Mas só consigo acordar como eu!


Acordo sempre o mesmo,

apesar de ter mudado.

Tento sempre mudar,

apesar de saber que serei sempre o mesmo.

Não por teimosia... por coerência.


Tento acordar os outros,

mas desligam-me

como a um despertador fora-de-horas

ou passam por mim

como por um anúncio muito visto.


Um dia destes desisto

dos que bebem desta vida para esquecer,

dos que se fazem escravos do tempo sem querer,

dos que bebem para esquecer que são bêbados,

dos que bebem para esquecer que são almas.


Sexta-feira, 27 de Junho de 1997

SAC