domingo, 27 de junho de 2010

A Agonia do Morto Nº 591.312


Desconfio de tudo nos outros.
Desconfio do nada nos outros,
porque a indiferença acorda a dor,
porque o tudo é confuso de se ver,
porque o nada é assustador
e porque acabei de morrer.

Morri! E que resta de mim
para além da madeira no cortejo.
Digam-me. O que resta de mim.
Digam-me, que já não vejo.

Resta de mim um silêncio,
um suspiro que queiram recordar?
Resta de mim uma palavra
da qual queiram gostar?

Para além do corpo parado,
inerte, não movido, fechado,
resta de mim alguém?

Para além do rosto descorado,
aclarado, invertido e despido de fado,
resta alguém?

Será que resto em alguém?
Será que resto em ninguém?
Será que sou só resto?

Quem sofre por mim
a minha morte que eu não posso?
Não vêem que sou só osso?
Não vêem que morri?

Se calhar morri antes de morrer.
Se calhar nem cheguei a viver.
E gastei tempo demais
a dar e a dar de comer.

Gastei tempo, demais,
a dar e a dar sem receber
a quem nem sequer se importa mais
se vivi, se morri, se acabei de morrer.

A quem nem sequer se importa mais
se a minha morte é alegria,
se a minha morte é tristeza,
se a minha morte é uma mais.

Se a minha morte é alegria:
Venham festejá-la.
Façam festa.
Gritem, bebam e deitem foguetes.

Mas venham, que estou sozinho.
Venham morrer só um bocadinho.

Se a minha morte é tristeza:
Venham vê-la.
Façam festas.
Gritem, bebam e deitem-se p`ró chão.

Em silêncio! Peço-vos. Em silêncio.
Vejam a morte sem palavra.
Façam festas a quem precisa.
Não a mim que acabei de precisar.
Gritem em silêncio.
Bebam em silêncio
e deitem-se p`ró chão sem se deitar...
... se é que gostaram de mim.

Quando me deram o último Beijo?
Quando puseram a vossa mão na minha?
Quando disseram que gostavam de mim?
Quando quiseram dar-me um Beijo?
Quando quiseram por a vossa mão na minha?
Quando gostaram de mim?
Gostaram de mim?

Gostam de alguém?
Se gostam...
... um beijo,
um abraço,
uma palavra de carinho,
de apreço, gratidão,
um silêncio de caminho,
“agradeço a prontidão”.

Antes que ele desça à terra.
Antes que ele suba aos céus.
Antes que ele morra.
Antes que ele se vá embora.
Antes que ele desapareça.
Aproveitem agora.

Agora. Já!
«”Já”. Advérbio de tempo sem sentido»
Só para a morte o faz.
Só o morto é diluído
no passado trespassado capaz
e o morto só nos faz sentido depois de diluído,
esquecido, em paz.

Agora, passem a ser humanos.
Agora, não deixem morrer alguém
sem dar alguém de vós
e dar palmas a todos nós.


Terça-feira, 1 de Agosto de 1995
SAC

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Embalsamado


Quando morrer quero ser embalsamado
e quero estar sentado no meu quarto
a ler um livro aberto...
e que o livro seja de poesia
e que a poesia seja minha
e que o poema seja este
e que este poema consiga ser poema
e que eu consiga ser embalsamado
para que todo este poema seja verdade.

E para que eu viva como se estivesse vivo
e para que eu ame como se estivesse morto,
deixem-me um prato ao lado
com uma sobremesa saborosa,
que tenha chocolate derretido
e um boneco de ovo embalsamado
e que seja uma mulher que me ame
quem me sirva a sobremesa
e que me olhe como nunca olhou
e que chore como nunca chorou
e que depois se vá embora
e me deixe sozinho como nunca deixou.


Segunda-feira, 14 de Outubro de 1997
SAC

sábado, 5 de junho de 2010

Talvez Imagines


Poeta!
Escreve-me um beijo
de que ela goste
porque eu gosto tanto dela.

Escreve-me o desejo
deitado ao mar.

Escreve-me o mar
deitado ao rio.

Escreve-me um relógio
sem ponteiros.
E um comboio
sem carris.

Escreve-me a morte
sem medo.
E a vida
sem alibis.

Escreve-me um precipício.
E escreve depois a minha queda
naquela boca tão feliz.

Escreve-me o Oceano
numa gota.
E talvez imagines este sentimento
dentro de mim.
E talvez imagines
a força que faço...

E agora peço-te:
escreve-me um lenço
porque a força que faço
é para não chorar.
P’ra não chorar
de tanto gostar.

Quinta-feira, 19 de Abril de 2001
S.A.C.