sexta-feira, 27 de novembro de 2009

A Rebeldia de Conseguir


Num fogo escondido arde a esperança
em ondas de mar que não torna.
Deita-se o barco quando nasce
e o que lhe acontece ninguém sabe.

Passamos a vida a tentar
fazer o tempo ao contrário,
fechar portas, janelas e alçapões
e olvidar o que vimos p’ra lá deles.

Passamos a vida a tentar
esquecer, fechar, morrer
aquela parte de nós que não queremos
sem que cheire ou apodreça.

Somos larvas dessa tentativa
procurando a saída e um ar que respire.

Passamos esta vida a tentar
que gostem de nós ou de uma
ou outra parte que foi feita para isso,
que se lembrem, que nos abracem,
que se esforcem, que nos sintam,
que nos perdoem, que tentem.

Tentamos a vida que passa
E a vida que fica.
Tentamos a que não passa e não fica,
aquela outra que não existe,
esta aqui tão perto, tão próxima,
tão quente, desejosa, ansiosa
mas que nunca nos toca.

E nessa tentativa tão pungente,
nessa procura tão ardente
e quantas vezes lancinante
que tentamos ingenuamente
fazer crer que não existe,

Somos como um músico
que ensaia sem partitura,
que lima as unhas nas cordas
como se baloiçasse lá de cima
como trapezista sem rede.
O músico falha, o músico tenta.
O músico tenta, o músico falha.
E novamente tenta.
E novamente falha.
Até falhar menos.
Sempre menos em cada tentativa.

Mas só será um bom músico
quando se aperceber
que a música que executa será sempre uma falha
e que a tentativa será sempre a sua alma.

A vida é uma folha em branco
sem linhas e sem notas
onde a perfeição é impossível.

E nós, somos como músicos
que são como trapezistas
numa corda bamba.

Mas nesta vida podemos escolher.
Podemos render-nos à imperfeição
ou podemos representar em nós
a rebeldia de tentar,
que é neste mundo
a rebeldia de conseguir.

Novembro de 2003
Benfica - Lisboa

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

A Rosa dos Santos


Apontavam para mim os teus seios.
Dançavam falando teus lábios
tão quentes e... tão cheios
que apertavam os meus olhos de desejo.

Saltavam teus seios tão fartos
quando entravas onde eu estava
e entrava contigo eu onde estavas tu,
que já Deus não importava,
que já sorte não precisava,
que já Sol queria não nascesse.

Voavam teus cabelos soltos,
Dançava teu corpo nu com roupas,
enquanto bebia frutos que pendiam de ti
e lançava meus olhos aflitos
e dormia em momentos finitos
e passava por eles sem passar.

Bebia teus lábios bonitos
e enquanto os bebia
perdia-me em ti
e perguntava:
porque te chamas imaginação?

Terça-feira, 16 de Maio de 1997
SAC

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Mentes de Saudade


Num cacho de persianas
se dá o mote para uma cidade.

A cidade esconde-se, sussurrando,
como um menino que tenta,
na sua ingenuidade doce,
desprender os pássaros da sua alma
conservando-os numa gaiola.

Não é de barro, mas parece.
E as lágrimas do menino que não vemos
são de louça branca.

Acontece.
As suas lágrimas são como uvas
que deslizam e se tornam
menos de louça,
menos de branco,
caem maduras tintas
e deixam-nos embrulhados na nossa saudade.

Seremos o menino, a cidade, os pássaros ou as uvas?

Lutaremos pelas persianas, pelos gestos e pela luz que entra?

Seremos porventura toda a luz que não entra,
todo o pássaro que não voa,
toda a alma que não dança,
todo o ventre que não germina.

Seremos de certeza
Ícaro que voa,
menino que se esconde
na sua imaginação
e no brilho da sua cidade.

Sexta-feira, 13 de Novembro de 2009
Alfragide

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Desabafo


Embora seja corroído por dúvidas
sou feliz...
Mesmo sabendo que sou um vale de lágrimas.
Mesmo sabendo que o nada que procuro é mesmo nada.
Mesmo sabendo que tudo o que encontro é mesmo nada.
Mesmo sabendo que quem me procura nunca me encontra...

Estou perdido de mim mesmo...
Procuro-me num jardim,
mas não me encontro.
Levo as mãos à cabeça
e quando as mãos se juntam
apercebo-me que não estou lá,
nem nunca estive,
nem nunca estarei
nesse jardim que é a felicidade...

No entanto sou feliz,
mesmo sabendo que sou uma montanha,
de vales,
de lágrimas.

Terça-feira, 28 de Abril de 1998
SAC

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Onde pertenço


Amo-te tanto
e tão somente
quando te sinto longe
no mundo dos sonhos
dormindo no meu peito.

Teus olhos vagueiam
debaixo das pálpebras
como barcos pequenos, perdidos
numa grande tempestade.

Mas teus olhos semicerrados
são como um duplo pôr-do-sol
donde refulge uma luz intensa
que ondeia reflectida
nas velas do meu coração.

E teus olhos abertos
são faróis que me guiam
sem medos, sem âncoras
na correnteza suave das ondas do amanhã.

E nessa promessa me perco.
E nessa maré me deixo levar.
Boiando na certeza do teu amor.
Bolino no teu corpo
procurando nessa luz imensa dos teus olhos
a tua alma, o meu mar.

És o meu lugar.


Sexta-feira, 29 de Outubro de 2004
S.A.C.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Mendigo de papel


Encostado a uma parede estou.
Deixo-me ali encostado e saio de mim.
Vejo-me e confundo o meu rosto com a parede.
Está frio, despido e com os olhos fechados.

Parecia abandonado e estava-o de facto.

Faminto de vida, pedinte de força,
aspecto de nada, silêncio de tudo,
largado no precipício, estropiado mas não morto,
lentamente sigo o meu caminho
como todos os outros... precipícios.

É verdade. Sou mendigo de papel.
(ou serei papel de mendigo?)

Quinta-feira, 2 de Outubro de 1997
Santos - Lisboa