sábado, 11 de dezembro de 2010

Definição de Amor

O afável pastor que faz do seu passeio as ervas
e que na quietude que lhe parece a do mar
toma um mergulho eterno que chama de banho,

disse após dele se levantar:
“O Amor é tudo isto, o contrário disto e muito mais.”

E o afável pastor que faz do musgo as suas roupas
e que na quietude que lhe parece a do vento
toma outro mergulho eterno, apercebeu-se que o rebanho...

não tinha ouvidos.

Terça-feira, 28 de Janeiro de 1997
SAC

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

As Pupilas do Sr. Revisor


Levantado pela bruma da manhã,
atordoado pela inércia de Agosto,
abro os olhos e acordo outra vez
entre os solavancos de um comboio.

Descubro nas pupilas do revisor
que a minha vida mais parece
um transporte público, em hora de ponta,
no pico do Verão e na arte de um atraso.

Angustiado penso. Pensando.
Que a vida não se deveria transportar.
Que as sinapses não deveriam ser
passageiros ensardinhados contra a porta de um vagão.

E que a estação de lugar nenhum
deveria chegar a todo o tempo
para nos salvar de uma porta
que não abriu na altura devida!


Terça-feira, 29 de Agosto de 2006
Bobadela - Sete-rios - Bobadela

domingo, 3 de outubro de 2010

Triste Homem


Passos… sempre passos…
Oiço passos… tantos passos…
Uns atrás dos outros passos
e todos atrás de mim.

Nestes passos
resistentes, persistentes, insistentes
que me rodeiam, encandeiam, incendeiam a minha alma
sinto a amargura de não pertencer
e a esperança de algum dia morrer. Cedo.
Mas não calado!

Aqueles que passam
olham, mas não me vêem
e eu já os vejo
sem precisar de os olhar,

porque são sempre os mesmos
sempre a mesma indiferença
dos mesmos rostos e dos mesmos olhos
atrás da mesma hipocrisia
das mesmas conversas
e das mesmas ideias
sobre os mesmos assuntos
debaixo do mesmo egoismo
à volta do mesmo umbigo
vestidos da mesma maneira
vomitam para cima de quem ousa ser diferente.

E dizem que falam
dizem que raciocinam, cogitam, pensam
mas ignoram que é sempre por fora
esses reis da aparência
e do comodismo
e das revoluções com florzinhas
que proclamam a fotografia
e esquecem que a vida é um filme.

E nesta teia
que me trama,
nesta merda que me envolve,
que é do Homem
sem ter opinião?

Levanta-te,
mostra-te
e faz alguma coisa.
Ousa, abdica
e escolhe.

Serás sempre um triste homem
se o não fizeres.


Terça-feira, 4 de Fevereiro de 2003
SAC

domingo, 19 de setembro de 2010

Assustei-me ao sonhar


Acabado de entrar no quarto...
Acabado de sair de um mundo irreal...
Acabado de acordar, estremunhado...
Acabei de escrever e olhei em volta...

Era estranho, espalhado no chão.
Parecia perdido, esquecido no tecto,
por já não ter Lua e se afogar
constantemente dentro de quatro paredes.

Estava partido, desmanchado, corroído, marcado
e pontapeado, desmazelado, marcava passo atrás da sua sombra.
Deleite masoquista se alimentava de nêsperas podres
e sangrava da boca, por onde saía o coração,
por onde saía o seu amor,
por onde vertia a sua arte,
a sua sedução,
a sua escrita.

Pegajoso ao tempo esbracejava lentamente no espaço.
Embrenhado em atitudes diluvianas, perseguido por si,
fugindo de tudo... procurando apenas o vácuo onde coubesse.

Não tinha pernas. Cortou-as. Para que as queria se não andava?
Não tinha cérebro. Gastou-o. Para que o queria se pensava sempre o mesmo?
Não tinha braços. Decepou-os. Para que os queria se não abraçava?
Mantinha o coração. Não o podia decepar.
Não o podia cortar.
Não o podia gastar. Já não era seu.

Não era humano, mas também não era coisificável.
Parecia uma formiga, inchada... do tamanho de um elefante.
Sem membros era constituída por três partes:
uma, chorava... a segunda, olhava fixamente a primeira... a última, sofria o desgosto de as não poder ajudar.

A certa altura, ouvi uma gargalhada.
A certa altura, a gargalhada calou-se.
A certa altura, a gargalhada transformou-se

em berros, em choro, em gritos lancinantes de dor,
em gemido, em soluços, em momentos calados de pavor.

A certa altura, caí em mim
e apercebi-me

que era eu que chorava
e que era eu que berrava.
que estava frente ao espelho
e que olhava o meu reflexo.
que o meu reflexo era tudo aquilo
e que tudo aquilo era eu.

Então decidi fugir, do quarto
sonhar, sem mim
suster, a Vida.

Impossível fugir. O meu quarto, está dentro de mim.
O meu sonho, sem mim não existe.
A vida essa, continuaria sem mim.

Calei o meu egocentrismo.
Na rua vi corpos saltitantes, como dantes,
mas notei as almas caídas, arrastadas, cada um com a sua... angustiada.
Na rua vi sorrisos, distantes como sempre
e percebi porque eram assim...
São humanos... como eu.

Calei a minha distância.
Descobri o sabor da frontalidade
e voltei a sonhar... e assustei-me ao sonhar.

O sonho era demasiado diferente.
Era colorido, correspondido, lindo.
Era pôr-do-sol, era o nascer dele.
Era Lua e maresia numa ponte de fantasia.
Era uma mulher de sonho que nunca existirá.
Era o mar infinito, porque não vemos o que está para lá.
Era uma rua de amor iluminada, que nunca será acendida.
um relógio que pare, um ponteiro que ande para trás.
uma chave-mestra e um médico que opere defeitos.
olhos que não mentem, corpos que os não contrariem.

Mas calei a minha inércia.
e enfrentei os meus pesadelos... realidade.
Mas calei a minha impotência.
e enfrentei os meus medos... exagero.
Mas calei a minha boca.
e enfrentei a minha vida.

E quando me calei,
uma criança gritava
e bolsava desgostos,
do mínimo ao amor e amizade.

E a criança gritava
e regurgitava palavras
de desânimo, dor e saudade.

E essa criança era eu...

Tinha acordado.


Quinta-feira, 5 de Setembro de 1996
SAC

sábado, 11 de setembro de 2010

Dentro de Mim Uma Ausência


Dentro de mim uma ausência.
Mais não sei dizer.

Dentro de mim um vazio.
Mais não sei encher.

Dentro de mim uma lua
única, bela, distante.

Dentro de mim eu sei lá,
um sorriso que ninguém olha,
uma lágrima que ninguém vê.

Dentro de mim um não sei quê
que voa por janelas abertas
portas, persianas escancaradas
para o lado de lá.

Dentro de mim o Sol
quente, ferve, demasiado.

Dentro de mim o mar
sozinho, sem ondas, parado.

Dentro de mim uma ilha
pequena, linda, deserta.

Dentro de mim sítios
lugares vazios vácuos eternos…

Dentro de mim uma ausência
mais não sei dizer.

Quinta-feira, 8 de Julho de 1999
S.A.C.

Bandeira Vermelha


Está bandeira vermelha no meu coração.
Agitam-se as águas de maneira diversa,
embrulha-se o mar ao contrário, sem espuma
e estranho todo o mundo que me cerca, absurdo.

A tua ausência...
Não tenho mais nada a dizer sobre a tua ausência.

Apenas grandes silêncios me derrubam
qualquer palavra é vã
e não te traz de volta.

Tudo me parece definitivo,
aqui sozinho.

E quando há uma pausa silenciosa
entre os silêncios que me guardam
olho aquela praia distante onde fui feliz.

E só vejo nela uma bandeira vermelha
esvoaçando ao forte vento que nada traz,
reinando sobre a areia rude que nada diz,
esperando uma palavra, um gesto, um beijo, um navio
que tranquilize este mar triste, vazio, revolto...

Sábado, 5 de Novembro de 2005
Montijo

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Ana


Sem me aperceber, se calhar
é de ti que sinto falta,
é dos teus lábios que o meu rosto precisa,
é por teus cabelos que as minhas mãos sofrem,
é por teu que o meu coração se repete.

Sem me aperceber, se calhar
é o primeiro beijo que anseio nos outros,
é a primeira carícia que sinto quando me afagam,
são os teus olhos que procuro
naqueles que nem reparam em mim.

Se calhar, sem me aperceber,
é de ti que sinto falta,
é dentro do teu coração que bate o meu,
é dentro do teu corpo a amnésia permanente
de todas as minhas feridas e pseudo-felicidades,
de todas as minhas lágrimas,
de todos os meus erros e minhas ingenuidades.

Terça-feira, 28 de Janeiro de 1997
SAC

domingo, 25 de julho de 2010

Um Certo Errante


Da vidraça do carro que conduzo, à chuva,
por sobre as rodas na paisagem longa, alentejana…

As nuvens cinzentas parecem hordas de bárbaros ao longe.

Cavalgando por sobre o horizonte imenso,
agitam imensas espadas imensas desembainhadas.
Derrotam inimigos audazes e inexistentes.
Antecipam naquela imagem surda a beberagem de um novo saque,
brilhante de oiros e praitas e coibres e de amantes as noites melhores.

Antecipam mudamente,
enquanto afinal corro pelos caminhos de alcatrão
a velocidades inconfessáveis e loucas.
Antecipam aquela sórdida véspera do prazer,
na noite da audácia na loucura e na destruição,
como um breve despiste rumo ao suicídio,
num tique brusco e voraz num volante guinando o carro louco em direcção ao absurdo…

Em vez do acidente…

Gota a gota, precipita-se a chuva,
obliquamente sobre o pára-brisas do meu automóvel
onde se defuntam esses bárbaros tornados nobres,
na velocidade de uma paragem brutal.

Parados não são bárbaros.
Bárbaros parados são mais nobres que nobres,
se dessa paragem fizerem alento e pausa
que outros não ousam.

Um bárbaro parado é um errante que finalmente acerta,

se o amor for a sua convicção,
se o amor for a bandeira que hasteia no coração.
Desabrida e completa.
Apaixonada e certa.

Se correr,
nessa corrida que o trouxe até parar,
sem medir sentinelas nem punhos que o tentavam esfocinhar,
sem contar medidas delas nem cunhos que o tentavam viciar,
sem aferir moedas, moerdas, merdas, medas vendidas, incendiadas,
medos horrorizados, viciados,
guiados, telecomandados,
mandados, subjugados,
peixes dados e não pescados,
peixes filhos das redes e não suados.
E pensar só por si nessa errância pura e livre…

Estará parado.
Mas dentro de si viverá para sempre uma corrida eterna.

Porque errado é estar parado na hora de correr.

Sábado, 06 de Dezembro de 2008
São João da Talha

Láonde


Lindo era o mar,
lindas as canções
que o fazem vibrar
como dois corações.

Lindo era o mar
e lindas as dunas
e lindas as gaivotas
e eram lindas as estrelas

cadentes no mar
os peixes-voadores
voam nos teus sonhos
e caem no paraíso:
os teus olhos.

Lindo era o mar
e lindo ficou o dia
em que os olhei pedindo candura,
em que os olhei e eles me olharam,
em que os olhei e eles me ficaram,
em que os olhei e me deram ternura.

Não me lembro do dia em que os teus olhos olhei,
porque quando olho os teus olhos não me lembro do dia.
Mas sei que não me lembro por me deslembrar deslumbrado
da cor do teu, daquele dia, porque teus olhos olhei.

Então não olhando, o mar era lindo.
Então não as vendo, as flores cresciam.
Então não olhando, o sol brilhava.
Então não as vendo, as gaivotas voavam lá...

Lá onde os sonhos cantam.
Lá onde as noites brilham.
Lá onde o vento plana.
Lá onde dança a liana.

Láonde, Láonde, Láonde:

Ilha de musgos e de vida,
vida de paz e de alegria,
alegria de voz ternurenta,
alegria que alegra e alimenta.


Alegria dos meus olhos
por ver teus olhos sorrir.
Alegria por teus olhos
fazer do mundo existir...

Assim terno, meigo, fraterno.
Assim amigo, cuidado extremo.
Ali audaz, risonho, feliz.
Aqui sentido, lágrima, um beijo.
Assim carinho, antigo, até tremo

de pensar, sentir, ver sem teus olhos.
Então só fugir de ver com os meus.
E de pensar, sentir, sem ver teus olhos.
Então só fugir de ver com os meus.

Láonde, Láonde, Láonde

Lá-onde lindo era o mar
e mesmo que não fosse,
por teus olhos,
o salgado seria doce.

Sábado, 17 de Fevereiro de 1996
SAC

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Fique Menina, Fique


Detesto como brincas com os meus carrinhos,
como os amandas uns contra os outros,
como os amandas contra a parede
como se fossem bolas de ténis,
como os estragas e desmanchas e como acabas com eles.

Detesto como gozas as minhas borbulhas,
como gozas o meu corpo e me chamas bigodes,
como ando vestido, como corro, como ando,
como se fossem as tuas críticas bocados de cérebro que me faltam,
como me crias preconceitos, invejas inúteis e como acabas comigo.

Detesto como levas de volta tudo o que me deste
como prova do teu amor, como amor da tua prova,
como foste o primeiro amor e a primeira desilusão,
como nem tudo é totalmente bom nem mau,
com nem tudo é, totalmente.

Detesto como as pessoas mudam de trato
como quando ando de gravata ou de calções,
como me chamam vagabundo por estudar,
como me chamam estúpido por deixar,
como me dizem que nada sei da vida,
como lhes respondo que a vida nada sabe de mim.

Detesto como sem curso não valho nada,
como isso não é verdade, como isso é mentira,
como se fossem os cursos que fazem os homens e não o contrário,
como se os copos bebessem a água,
como se o sol tapasse a luz que irradia das persianas.

Detesto como me beijas sem sentir,
como adormeces sem me falar,
como falas sem me convencer,
como se fossem extintas as palavras belas,
como me explicas que nunca fui teu.

Detesto que só o digas agora,
como tiveste coragem para esconder,
como tiveste azar de eu ser assim
como uma lágrima que cai sem parar,
como já não há espaço para amar.

Detesto que só restem os filhos
como entre nós não há nada,
como tenho que provar que ainda estou vivo,
como sou homem, empregado, amigo, cidadão e amante,
como já passou tanto tempo e não pára,
como já não pára de crescer aquela primeira branca.

Detesto como já não é a única,
como me enchem a cabeça as brancas,
como me torno careca e curvo,
como preciso de bengala e descanso,
como me abandonam as pessoas.

Detesto como morrem os meus amigos,
como morreu a minha mulher,
como me deixam os novos,
como me perseguem as batas e as dores,
como já não valho a minha vida,
como são ingratos comigo,
como sou inútil para eles.

A menina diz que não,
que os seus olhos não são bonitos
mas como os seus olhos, menina enfermeira
não há outros, nenhuns.
Através deles, claros e verdes,
vejo o amor que nunca tive
e o ódio que tenho deixo de o ver.

Sábado, 26 de Fevereiro de 2000
SAC

sábado, 3 de julho de 2010

Do Mesmo Mar


Hoje sentei-me naquele pontão
de pernas cruzadas a olhar o passado
que batia no meu rosto em forma de sal.

Sentei-me e calei-me naquele pontão
a tentar fazer do meu aquele nosso silêncio
numa saudade que se desfaz como as ondas lá em baixo.

Hoje calei-me naquele pontão
a perguntar pelos teus dedos
à minha mão vazia,
a perguntar pelos teus medos
à tua lua, que lá no alto, aparecia.

Calei-me e chorei naquele pontão.
Chorei a vez em que te abracei.
Chorei os teus cabelos lisos, voando.
Chorei o teu corpo ao meu colo, naquele pontão.

E numa lágrima
revi o mar, vasto, imenso
no teu rosto de menina.

E senti-me num pontão
do mesmo mar,
na mesma solidão
a olhar a lua,
a pensar no nosso silêncio.

Quarta-feira, 22 de Setembro de 1999
SAC

domingo, 27 de junho de 2010

A Agonia do Morto Nº 591.312


Desconfio de tudo nos outros.
Desconfio do nada nos outros,
porque a indiferença acorda a dor,
porque o tudo é confuso de se ver,
porque o nada é assustador
e porque acabei de morrer.

Morri! E que resta de mim
para além da madeira no cortejo.
Digam-me. O que resta de mim.
Digam-me, que já não vejo.

Resta de mim um silêncio,
um suspiro que queiram recordar?
Resta de mim uma palavra
da qual queiram gostar?

Para além do corpo parado,
inerte, não movido, fechado,
resta de mim alguém?

Para além do rosto descorado,
aclarado, invertido e despido de fado,
resta alguém?

Será que resto em alguém?
Será que resto em ninguém?
Será que sou só resto?

Quem sofre por mim
a minha morte que eu não posso?
Não vêem que sou só osso?
Não vêem que morri?

Se calhar morri antes de morrer.
Se calhar nem cheguei a viver.
E gastei tempo demais
a dar e a dar de comer.

Gastei tempo, demais,
a dar e a dar sem receber
a quem nem sequer se importa mais
se vivi, se morri, se acabei de morrer.

A quem nem sequer se importa mais
se a minha morte é alegria,
se a minha morte é tristeza,
se a minha morte é uma mais.

Se a minha morte é alegria:
Venham festejá-la.
Façam festa.
Gritem, bebam e deitem foguetes.

Mas venham, que estou sozinho.
Venham morrer só um bocadinho.

Se a minha morte é tristeza:
Venham vê-la.
Façam festas.
Gritem, bebam e deitem-se p`ró chão.

Em silêncio! Peço-vos. Em silêncio.
Vejam a morte sem palavra.
Façam festas a quem precisa.
Não a mim que acabei de precisar.
Gritem em silêncio.
Bebam em silêncio
e deitem-se p`ró chão sem se deitar...
... se é que gostaram de mim.

Quando me deram o último Beijo?
Quando puseram a vossa mão na minha?
Quando disseram que gostavam de mim?
Quando quiseram dar-me um Beijo?
Quando quiseram por a vossa mão na minha?
Quando gostaram de mim?
Gostaram de mim?

Gostam de alguém?
Se gostam...
... um beijo,
um abraço,
uma palavra de carinho,
de apreço, gratidão,
um silêncio de caminho,
“agradeço a prontidão”.

Antes que ele desça à terra.
Antes que ele suba aos céus.
Antes que ele morra.
Antes que ele se vá embora.
Antes que ele desapareça.
Aproveitem agora.

Agora. Já!
«”Já”. Advérbio de tempo sem sentido»
Só para a morte o faz.
Só o morto é diluído
no passado trespassado capaz
e o morto só nos faz sentido depois de diluído,
esquecido, em paz.

Agora, passem a ser humanos.
Agora, não deixem morrer alguém
sem dar alguém de vós
e dar palmas a todos nós.


Terça-feira, 1 de Agosto de 1995
SAC

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Embalsamado


Quando morrer quero ser embalsamado
e quero estar sentado no meu quarto
a ler um livro aberto...
e que o livro seja de poesia
e que a poesia seja minha
e que o poema seja este
e que este poema consiga ser poema
e que eu consiga ser embalsamado
para que todo este poema seja verdade.

E para que eu viva como se estivesse vivo
e para que eu ame como se estivesse morto,
deixem-me um prato ao lado
com uma sobremesa saborosa,
que tenha chocolate derretido
e um boneco de ovo embalsamado
e que seja uma mulher que me ame
quem me sirva a sobremesa
e que me olhe como nunca olhou
e que chore como nunca chorou
e que depois se vá embora
e me deixe sozinho como nunca deixou.


Segunda-feira, 14 de Outubro de 1997
SAC

sábado, 5 de junho de 2010

Talvez Imagines


Poeta!
Escreve-me um beijo
de que ela goste
porque eu gosto tanto dela.

Escreve-me o desejo
deitado ao mar.

Escreve-me o mar
deitado ao rio.

Escreve-me um relógio
sem ponteiros.
E um comboio
sem carris.

Escreve-me a morte
sem medo.
E a vida
sem alibis.

Escreve-me um precipício.
E escreve depois a minha queda
naquela boca tão feliz.

Escreve-me o Oceano
numa gota.
E talvez imagines este sentimento
dentro de mim.
E talvez imagines
a força que faço...

E agora peço-te:
escreve-me um lenço
porque a força que faço
é para não chorar.
P’ra não chorar
de tanto gostar.

Quinta-feira, 19 de Abril de 2001
S.A.C.

sexta-feira, 19 de março de 2010

As Pessoas São Como Livros


As pessoas são como livros.
Alguns guardados em estantes,
esquecidos, direitos e escondidos.
Outros no meio da sala,
lembrados, abusados e rasgados.

Mas como qualquer livro,
as pessoas, lembradas ou esquecidas
precisam de alguém...
precisam, de um leitor...

Um leitor que pare.
Essencialmente um leitor que pare.
É tão bom parar. Falar. Rir.

Mas as pessoas não têm tempo.
“Vou buscar manteiga ao super”
“Tenho que limpar o pó”
“Tenho que estudar”
“Vou limpar o pó ao hiper”
“Tenho que ficar só”
“Tenho que limpar”

Tudo serve para não falar.
Tudo se acha belo sem gostar.
Tudo arranjado, sem tempo, sem espaço... é já um costumar...
Mas nada, nada se aprende sem falar.

A razão. Milagre feiticeiro que serve.
Serve aqueles que são vistos e não querem ver.
Serve aqueles que vêem e não querem ser.
Serve aqueles que cegos são e que tudo vêem.
Serve aqueles que são estrábicos e sem sentir...

... ficam a saber que sem o sentimento
a Razão é fria, sem movimento
a Razão não é humana, é um lamento
a Razão é nada, sem sentimento.

Porém, é uma necessidade ser racional para...
racionalizarmos os sentimentos e para...
sentimentalizarmos os raciocínios.

Se formos apenas racionais...
somos apenas irracionais... e sentimos muito mais
porque nascemos racionais,
porque vivemos, melhor, vegetamos racionais
e acabamos por ficar racionalmente
obcecados, sistemicamente absorvidos pelos sentimentos.
Temos fobia pelo espelho em que se reflecte a realidade...
e acabamos por nos sufocar na realidade.

Também não vale a pena sermos sentimentais
apenas sentimentais.
Porquê? Porque é demais.
É demais sermos ao mesmo tempo...
o sentimento, o equilíbrio,
a balança, o fio de prumo,
o quadrante, a bússola,
dos outros, para os outros e em prol dos outros.
E os outros?
Servem-nos a Razão.
Servem-nos à mão.
Servem-nos como se serve uma bola de ping-pong.

Parar para existir.
Parar para folhear, para ver, ler e pensar.
Para que haja empatia.
É tão bom falar o que o outro fala.
Sentir o que o outro sente e às vezes...
só às vezes... ser precioso demente da dor que o outro sente.

Só são livros intangíveis, ilegíveis
aqueles cujo leitor não tem paciência,
tempo, espaço...
E mesmo aqueles que têm cadeado...
cabe ao leitor...
procurar a chave... mas para isso...
é preciso gostar do livro.

Ao ler uma pessoa.
Ao ter tempo e paciência para a ler.
Ao ter espaço para ler dentro de si...
Ao ler...

Apercebemo-nos facilmente das semelhanças
das vivências
das pessoas.


Apercebemo-nos
que por vezes
a culpa é virtude
que beberica nas águas
da saudade.

Que por vezes
saudamos o alaúde
sem este ser dom,
dom de Deus mas sino
de igreja.

Que por vezes
não somos nada
sem parar para ler uma pessoa,
sem escutar o seu sentir,
sem chorar o seu chorar,
sem derramar a sua dor, as suas lágrimas cor de sangue.


Sexta-feira, 13 de Dezembro de 1995
SAC

sexta-feira, 12 de março de 2010

As Cordas que me Prendem Tenho Medo de As Não Tecer


As cordas que me prendem tenho medo de as não tecer
pois são, não passado inóspito mas inóspito futuro,
próximo como a guilhotina, como as noites e os dias
de cemitérios arrepiantes e loucuras frias,
de Norte desnorteado e desabaladamente obscuro,
de ter medo de morrer, de ter medo de viver.

Tenho medo de morrer, como tenho medo de viver,
mas as cordas... as cordas que vou tecer
não passam, por não passar que passam, de um fio obscuro
que não diz nada do meu passado, de amor e futuro,
que não diz nada de suores, preocupações e mãos frias,
que nada diz de choro e dos passados dias.

Ontem nada tinha, apenas dois dias
em que me diverti a ver morrer de viver
as minhas ossadas em catadupas frias,
sem que de lã, de linho ou água quente as pudesse tecer.
Ontem nada tinha, apenas a minha imagem no espelho do futuro,
pálida, olheirenta, sonolenta, negra, suja e triste, como o céu de mar invernoso, obscuro.

Mas apesar de ser obscuro, não sou, não penso e não ajo obscuro.
Sou eu, sou claro, sou digno e os meus dias
nada têm a ver com os dias dos outros e de futuro
vou ser o presente, vou ser eu e viver
sem pena ser poeta sem musa tecer
com sentimento palavras que nada têm de frias.

Apareceu um pintor de mãos frias.
Apareceu um príncipe de cavalo branco e obscuro
e que faz todo o ano mil almofadas tecer.
Apareceu um homem que rema para os dois lados, todos os dias,
sem parar, sem cansar, sem, viver
vou, pensando no presente ir vivendo o meu futuro.

E depois? Eternamente o meu presente vai ser o meu futuro.
Mãos. Porque tenho que as ter se o pintor as tem frias?
Por um sábio que te soube saber viver
não, não te vou ser obscuro.
Apenas, apenas viver todos, todos os dias
e enquanto o futuro for uma mancha só, vou só tecer...

Que interessa a mim pensar, tecer e parecer o futuro?
E os dias da morte que nascem sempre em tardes frias?
Obscuro vou ficar, escondido quero estar, no presente viver.


Terça-feira, 9 de Janeiro de 1996
SAC

segunda-feira, 8 de março de 2010

As Cinzas


Até na dormência perpétua
há beleza e há cor.
Falta-nos lucidez absoluta
para o vivermos com todo o esplendor.

As pessoas são como vizinhos urbanos
que se olham à janela de prédios altos
e que se confortam nessa proximidade.

Mas esquecem-se que na verdade
há um túnel por escavar
da minha janela para a tua.
(a distância ergue-se
como daqui para a Lua!)

A tarefa é árdua, dolorosa,
dura uma vida, a escavação.
Mas nascem flores
a cada pedaço de terra revolvido
embebidas no suor do nosso empenho.

E nesse túnel
há pessoas e há cores.
E nessas pessoas
há amor à espera de viver.

E nesse túnel
há saudades e há matizes.
E nessas lágrimas
há desejos que podem.

Podem transformar
A cor do mar de alguém.

Até as cinzas
podem ter cores.
Várias. Bonitas. Lindas. Vivas!

Domingo, 8 de Janeiro de 2006
Montijo

sábado, 27 de fevereiro de 2010

A Rosa dos Santos


Apontavam para mim os teus seios.
Dançavam falando teus lábios
tão quentes e... tão cheios
que apertavam os meus olhos de desejo.

Saltavam teus seios tão fartos
quando entravas onde eu estava
e entrava contigo eu onde estavas tu,
que já Deus não importava,
que já sorte não precisava,
que já Sol queria não nascesse.

Voavam teus cabelos soltos,
Dançava teu corpo nu com roupas,
enquanto bebia frutos que pendiam de ti
e lançava meus olhos aflitos
e dormia em momentos finitos
e passava por eles sem passar.

Bebia teus lábios bonitos
e enquanto os bebia
perdia-me em ti
e perguntava:
porque te chamas imaginação?

Terça-feira, 16 de Maio de 1997
SAC

A Atitude Divina


Não era santa não,
pois que a sua bondade
era mais que milagre.

Não era profetisa não,
que a tal não ascendia
pela sua real humildade.

Não era a divindade em nome,
mas que à direita de Deus Pai
está, não tenho dúvidas.

E quem as tenha
deve ocupar a esquerda de belzebu,
lugar das mil súplicas,
das não atendidas almas,
as dos profetas da desgraça,
da vendeta e dos critérios.

Mas por mais mistérios,
por mais irados
e mais histéricos que sejam...

Não passarão
de idades, fases quentes e não pensadas

Não passarão
de momentos efémeros, injúrias inchadas.

E passarão
de ouvido a ouvido,
sem o coração ouvir, indiferente,
sem a cabeça sentir, descontente,
sem que a bílis se não torça, se não tente...

Ah Vovó...
Que saudades tenho eu de Ti.

Nada mais tenho que dizer...
Vou tentar seguir-Te.

Terça-feira, 16 de Janeiro de 1996
SAC

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Dança Poliritmada


Certas vezes incertas
a vida assemelha-se
a um transporte público.
Mal que bastasse já era
a vida assemelhar-se a coisa alguma…

Certo dia incerto embarcas sem crer
no relógio descompassado que mede
algo que perdeste.

Por uma vez chegas a tempo
na rotina do cansaço
a tempo do tempo e do espaço
e do próximo comboio.

Aceito os apertos, os empurrões,
os cheiros pestilentos
dos sovacos malcheirosos,
dos hálitos apodrecidos
e dos pés mal lavados.

Aceito a violência gratuita,
de borla, sempre fajuta,
das facadas e dos assaltos
mão-armada ou pé descalço.

Aceito os idiotas dos anões
tão parvos que discutem, violentos,
virulentos assuntos tão pequenos,
tão mesquinhos, tão cheios de nada.

Aceito a minha condição pobre,
coitado, atirado, arremessado,
arrevesado de um para outro lado
ao sabor dos carris,
à medida de uma tosse de Inverno,
à sombra de um sol morto.

Aceito o descompasso,
o desencontro,
o desalinho, o desacordo,
a dança poli ritmada
de uma vida só com algum sentido:
o sentido do minuto…
que no minuto seguinte
já nada vale,
tudo desmente, desmonta e desfaz,
sujeito ao virar de uma esquina
inesperada,
ao virar de um beijo
roubado,
à curva do comboio de hoje
perdido.
Estou.
Lá.
E não me encontro.

Afinal o comboio, outro,
Vive dentro de mim.
E não sabia.

Quarta-feira, 6 de Setembro de 2006
S. João da Talha

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Saco de Sol


Serão maviosas as tuas mãos que recordo.
Nessa esperança adormeço.
E dormente acrescento mais uma noite
às noites onde o meu coração dorme ao relento.

Serão ciosas as tuas mãos que relembro.
Nessa magia acredito. Só nessa magia.

Porque na bola de cristal
só vejo e revejo uma lanterna de Aladino
que não posso esfregar.
E em vez dos desejos por realizar
três crucifixos vazios vejo
onde nenhum mártir se ousou deitar.

Nenhum messias,
nenhum druida,
nenhum oráculo,
nenhum Natal te traria de volta
hoje, agora, de imediato, já...

E enquanto isso, por isso, antes disso,
durante, somente, até e por causa disso
levanto-me todas as manhãs
antes do nascer do sol.

Aqui em Lisboa
todos os dias são escuros.

Porque tenho o raiar do Sol
guardado num saco
para to dar.
Quando voltares.

Quinta-feira, 8 de Dezembro de 2005
Montijo

sábado, 6 de fevereiro de 2010

A Musa Perdida


Dei-te um beijo, soubeste-me a morango.
Dei-te outro, soubeste-me a mulher.
Outro ainda e subias as escadas do Olimpo.
Dei-te um abraço e fiz uma fogueira...

feita dos meus ossos
por não te merecer,
feita dos teus também
pois sabia que renascerias...

nas cinzas que mastigo
todos os dias, todas as noites,
todos os dias de castigo,
todas as noites no postigo...

em que vivo, consciente
sem ti, para ti e por ti,
em que morro, paciente
sem ti, de ti e por ti.

Segunda-feira, 18 de Dezembro de 1995
SAC

sábado, 23 de janeiro de 2010

Éramos 11!

Éramos onze!
Saímos da cubata a enrolar panos.
Não ficou redonda,
mas era grande. Bem grande!

O Pedro, o Matias, eu e o Jonas
formávamos a defesa.
O Geremias era o guarda-redes.
Com ele era uma limpeza!

No meio campo
o Quim, o Malelê, o Chico e o “Rufia”.
Lá na frente o “Kiko” e o “Mantorras”
para fazer os golos!

Naquela tarde estávamos a ganhar
contra os miúdos da aldeia do lado.
Aqueles não jogavam nada,
mas conseguiram empatar,
porque o Geremias não estava nos seus dias…

E quando começou a escurecer
vi a jogada mais bonita,
mais raçuda e espectacular
da minha vida inteira.

O Jonas pega na bola a meio campo
e na esperteza dos seus pés desenha círculos
que confundem os adversários:
finta um, dois, três, quatro
e outra vez o terceiro…

E quando toda a gente já babava
e estava de boca aberta
remata de pé esquerdo do meio da rua.

A bola voa, ganha altura,
bate no poste e entra furiosa.
Foi a festa geral! Gritávamos
e saltávamos felizes, radiantes!

O Jonas foi naquela felicidade buscar a bola
e quando a trazia como um troféu
acima da cabeça de braços estendidos,
toda a gente o olhava e esperava dele
aquele abraço.

Mas esse abraço não aconteceu
porque aquele pé esquerdo maravilhoso
pisou uma mina perdida
e porque o Jonas…
o Jonas… morreu.

Sábado, 19 de Outubro de 2002
SAC