domingo, 19 de setembro de 2010

Assustei-me ao sonhar


Acabado de entrar no quarto...
Acabado de sair de um mundo irreal...
Acabado de acordar, estremunhado...
Acabei de escrever e olhei em volta...

Era estranho, espalhado no chão.
Parecia perdido, esquecido no tecto,
por já não ter Lua e se afogar
constantemente dentro de quatro paredes.

Estava partido, desmanchado, corroído, marcado
e pontapeado, desmazelado, marcava passo atrás da sua sombra.
Deleite masoquista se alimentava de nêsperas podres
e sangrava da boca, por onde saía o coração,
por onde saía o seu amor,
por onde vertia a sua arte,
a sua sedução,
a sua escrita.

Pegajoso ao tempo esbracejava lentamente no espaço.
Embrenhado em atitudes diluvianas, perseguido por si,
fugindo de tudo... procurando apenas o vácuo onde coubesse.

Não tinha pernas. Cortou-as. Para que as queria se não andava?
Não tinha cérebro. Gastou-o. Para que o queria se pensava sempre o mesmo?
Não tinha braços. Decepou-os. Para que os queria se não abraçava?
Mantinha o coração. Não o podia decepar.
Não o podia cortar.
Não o podia gastar. Já não era seu.

Não era humano, mas também não era coisificável.
Parecia uma formiga, inchada... do tamanho de um elefante.
Sem membros era constituída por três partes:
uma, chorava... a segunda, olhava fixamente a primeira... a última, sofria o desgosto de as não poder ajudar.

A certa altura, ouvi uma gargalhada.
A certa altura, a gargalhada calou-se.
A certa altura, a gargalhada transformou-se

em berros, em choro, em gritos lancinantes de dor,
em gemido, em soluços, em momentos calados de pavor.

A certa altura, caí em mim
e apercebi-me

que era eu que chorava
e que era eu que berrava.
que estava frente ao espelho
e que olhava o meu reflexo.
que o meu reflexo era tudo aquilo
e que tudo aquilo era eu.

Então decidi fugir, do quarto
sonhar, sem mim
suster, a Vida.

Impossível fugir. O meu quarto, está dentro de mim.
O meu sonho, sem mim não existe.
A vida essa, continuaria sem mim.

Calei o meu egocentrismo.
Na rua vi corpos saltitantes, como dantes,
mas notei as almas caídas, arrastadas, cada um com a sua... angustiada.
Na rua vi sorrisos, distantes como sempre
e percebi porque eram assim...
São humanos... como eu.

Calei a minha distância.
Descobri o sabor da frontalidade
e voltei a sonhar... e assustei-me ao sonhar.

O sonho era demasiado diferente.
Era colorido, correspondido, lindo.
Era pôr-do-sol, era o nascer dele.
Era Lua e maresia numa ponte de fantasia.
Era uma mulher de sonho que nunca existirá.
Era o mar infinito, porque não vemos o que está para lá.
Era uma rua de amor iluminada, que nunca será acendida.
um relógio que pare, um ponteiro que ande para trás.
uma chave-mestra e um médico que opere defeitos.
olhos que não mentem, corpos que os não contrariem.

Mas calei a minha inércia.
e enfrentei os meus pesadelos... realidade.
Mas calei a minha impotência.
e enfrentei os meus medos... exagero.
Mas calei a minha boca.
e enfrentei a minha vida.

E quando me calei,
uma criança gritava
e bolsava desgostos,
do mínimo ao amor e amizade.

E a criança gritava
e regurgitava palavras
de desânimo, dor e saudade.

E essa criança era eu...

Tinha acordado.


Quinta-feira, 5 de Setembro de 1996
SAC

2 comentários:

  1. sonhar é assustador... viver, por vezes, também.. gostei muito.

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  2. Obrigado Continuidade dos Paraquês! Eu também gosto muito deste poema!

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