quarta-feira, 17 de agosto de 2011

E se o Mundo Fosse ao Contrário


E se o mundo fosse ao contrário.
E as pessoas fossem o que são e não o que parecem.
E os sonhos voassem como são e não como aparecem.
E as pessoas fugissem daquilo que não são, deixando-se viver,
deixando-se ver,
deixando-se ver viver.

E se o mundo fosse ao contrário.
E os sonhos fossem os corpos em vez das almas.
E os sonhos fossemos nós em vez de alguém
que deixamos morrer,
que deixamos de ver,
que deixamos de ver morrer. E somos nós!

E se o mundo fosse ao contrário.
E os sonhos fossem beber na fonte da realidade.
E as pessoas voassem, libertas de pesadelos.
E os sonhos fugissem como bocas para a verdade.
E as pessoas se desenrolassem como novelos.

E os sonhos fossemos nós em vez de alguém
que deixamos morrer, dentro de nós,
que deixamos de ver, olhos de Édipo furados,
que deixamos de ver morrer, dentro dos outros.

Ou vemos e nada fazemos!?
Ou temos consciência e não coragem.
Ou somos cobardes e não pessoas
e matamos os sonhos da realidade.

E agora, que o mundo seja ao contrário.
Agora que os olhos que nunca mentiram
sejam todo o corpo real.
Agora que os olhos que nunca se viram
sejam reflexo na realidade
e não espelho partido...

Má-sorte ser humano
e público de um triste espectáculo:
Almas lindas que amo...
tornadas mendigas que não aceitam as suas moedas.

Segunda-feira, 15 de Julho de 1996
SAC

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Segredo


Esse sorriso cheio de calor
que me derrete a alma
lembra aquela noite
que só nós sabemos
e que de tão bela
só sabe de nós.

Segunda-feira, 29 de Março de 2004
Benfica

Berlinde


Berlinde! Gostava de ser como tu...

O teu mundo também é redondo, mas é simples.
O teu vidro é claro como as ideias dignas.
As tuas cores são límpidas como a água.
Os teus sorrisos são as tuas voltas e voltas sem parar.

O teu mundo é uma estrada que desce onde sobes.
O teu mundo é feliz sem abafadores.
O teu mundo é contente...

Não tens que amar ninguém
Não tens que ter bons momentos
para seres feliz...
Não tens que ter boa memória
para te lembrares deles...

Não és obrigado a gostar de seres humanos.
Não és obrigado a gostar da indiferença deles.
Não és fechado pela ingratidão
de uma pergunta que não se faz,
de um sorriso que não se olha,
de um abraço que não se dá.

Berlinde, redondo e insensível.
Gosto de ti assim... previsível.

Roda, roda sempre, sempre sem parar.
Não pares, pára nunca para quem está a olhar.
Sobe aos montes, desce aos rios.
Salta, desprende o teu sorriso
e anda, anda sempre sem pensar

nos rostos ingratos que te corcomem,
nos meus olhos que acabam de chorar,
nas vidraças partidas onde correm os sonhos,
nas bolachas derretidas por chamas de amor.

Não odeias, não gostas, não choras,
não ris porque te chamas sorriso.
Berlinde é alcunha que te dão
por não te saberem desenhar na alma de ninguém.

Berlinde! Agora que faço estas linhas
porque choras na minha mão?
porque desvelas a tua tristeza?
porque revelas a tua amargura?
porque olhas com teu olho de vidro?

Largo-te e és felicidade.
Deslizas pelos meus dedos e foges.
Rodas sem os teus medos e dormes.

Rodas sem parar parado.
Danças sem ligar gingado.
Tocas tudo o que te apetece.
Ligas só a quem te conhece.

Berlinde! Gostava de ser sorriso.

Sábado, 1 de Março de 1997
SAC

Carta de Um Vidente a Um Cego


“Nesse dia estava Sol,
mas um Sol estranho
com a luz quase inerte e mole
como se tivesse levado um banho
de nuvens de pó-de-talco.

E estava escuro, como se essas nuvens
fossem já encobertas
de outras nuvens de pó de um palco,
onde o Sol fazia o papel de nuvem.

As nuvens eram incapazes de fazer de Sol,
porque além do Sol já nuvem ser,
as nuvens nunca foram o Sol
e o Sol vestido de nuvem deixou de se ver.

Nesse dia estava o Sol
pendurado como sempre
no tecto de um céu estrelado.
Demasiado estrelado até
para que se pudesse ver a noite.

O Sol estava nesse dia.
Pousado num chão invertido,
dele estavam a cair bocados,
em cima de mim e de toda a gente.
Eram raios suaves e quentes
por cima de mim, por toda a parte.

Nesse dia estava ao Sol,
mas ele estava mole,
estava cheio inerte,
estava escuro e estranho.

Olhei mais uma vez o Sol, achei-me: estranho e escuro
e achei-o muito estranho e muito escuro.
Tirei os óculos. Percebi. Eram de-sol.

Então sem óculos vi,
vi o que não vira antes,
vi o Sol e o céu claros,
vi as cores e as flores,
do eclipse o visível
e do invisível o eclipse.

E vi sorrisos estampados
em rugidos adamastores
e vi dentes cariados
de tanto sorrir como dantes.

Senti, senti o cheiro
de boninas, de floresta, de pinheiro,
de primavera docente que vem primeiro,
de argila discente que se molda depois,
de areia, de mar e de montanha,
de rios que nascem desde que morram,
de rios que vivem desde que corram.

Toquei, toquei os animais,
subi a pedestais,
desci ao horizonte
e andei por lá sem cair
e sem me aperceber
de que viajava numa lambreta,
que afinal era pateta,
que afinal por mais que custe,
não era num avião que voava
e quanto difícil é voar de bicicleta.

Voltei então a subir do horizonte, do futuro.
Voltei então a subir ao pedestal, aos animais.
Só eles percebem a mágoa de um peripateta maduro,
só eles percebem como é difícil viver sem sonhar mais.

Só eles porque os humanos,
de tanto animais serem,
de animal não têm nada:
nasceram diferentes,
diferentes hão-de morrer,
mas morrerão diferentes
se alguém os perceber.

Se souberem ler que te digam
estas linhas que foram por ti.
Se só souberem ver que te digam,
que estas manchas são de sonho.
Mas se souberem sentir que te digam
que morri, mas morri diferente.

Porque encontrei uma donzela
que via alegria,
sentia o cheiro à natureza,
tocava a melancolia,
gostava da beleza
e ouvia os sonhos
beijando a harmonia.

E encontrei uma donzela,
que finalmente me percebeu.
Eu voava como ela,
éramos iguais de bicicleta.
Ela voava como eu e o sonho
corria como uma gazela.

E o sonho brincava, ao Sol.
E o sonho brincava, na neve.
E o sonho nevava, em ti.
E o sonho passava, por mim.

E naquela tarde de Sol e sonho,
as tuas palavras eram de Sol
e tu eras feita de sonho
num parapeito de ventos
onde assentados estávamos,
misturando pensamentos
e decidindo comedimentos
à nossa alienação.

E contigo fartos de batuques,
assimetrias artificiais,
dioptrias costumeiras,
dia-a-dias citadinos.

Ouvi, ouvi o vento
a bater nas bandeiras
e as bandeiras voavam
e as bandeiras enchiam e esvaziavam.

Ouvi, ouvi o vento
a soprar nas bandeiras
e as bandeiras voavam
e as bandeiras enchiam e esvaziavam.

Ouvi, ouvi o vento
a soprar, a soprar
pelas folhas que sussurravam
parecendo o mar
e as bandeiras enchiam e voavam.

E as bandeiras
eram as tuas roupas
que voavam sem parar.
E os teus sonhos
uma gaivota
que já pousou no mar.

E as bandeiras
eram o teu corpo
quer voava sem roupa tua.
E os teus sonhos
uma gaivota
que já pousou na Lua...

E quando veio a noite
as bandeiras desapareceram
assim como tu e eu,
assim desapareceu
o pesadelo, a cidade.

E nessa noite tudo era noite:
os martelos, as sinfonias e os apitos,
os candeeiros, os holofotes e os gritos,
as persianas, as prateleiras e os pirilampos,
as montanhas, as casas e os campos.

E nessa noite ninguém me importou:
o guarda, o fiscal e o barbeiro,
o médico legista e o polícia sinaleiro,
o dentista, o vendedor e o político,
nem o trabalhador, nem o ventríloquo.

E nessa noite ninguém te importunou.
Conseguias ouvir o que eu via no céu.
Conseguias sentir o mesmo que eu.
Juntaste as estrelas e fizeste um candeeiro.
Juntei os nossos medos e fiz um quebra-luz.

Para que não fugissem os sonhos.
Para que não fugissem as estrelas.
Para que não nos queimássemos
e aos nossos olhos.
Para que não nos abatessemos
e ao nosso castelo.

É de cartas nós sabemos,
mas de cimento nós cremos.
É de cartas, é de cartas,
mas de sonhos, mas de sonhos.

Quiçá seja o único ponto em que nos entendemos,
mas é o sonho, mas é o sonho
de parar e sonhar porque sim,
de parar e sonhar porque não.

De coração iluminado estou agora
por saber que alguém sonha como eu.
De coração iluminado a toda a hora,
eu no meu canto do mundo e tu no teu.

És fruto da natureza e da beleza de que gosto
e eu sou tinta da memória do esquecimento.
És de uma estrela que do céu pousou a meu lado
e eu sou de um dólmen transformado em menir.”

Abro este livro
todos os dias
no mesmo dia.

Leio estas palavras
todos os dias
com o mesmo sentir.

Por isso, os dias que passam
já não passam mais.
Por isso os dias que ficam
são aqueles em que sonhei demais.

Abro este livro
todos os dias
no mesmo dia.

Tento-o fechar em vão.
Fica aberto em minha alma.
Fica aberto em meus olhos fechados.
Fica aberto no meu coração.

Leio estas palavras
todos os dias
com o mesmo sentir.

Tento-as esquecer em vão
todas as noites
com a mesma forma de mentir.

Tento esquecer que sou cego,
mas esqueço-me que para me esquecer,
é preciso ver outra vez,
é preciso sonhar outra vez, mais.

Mas é preciso não esquecer
que foi por sonhar que ceguei:
olhei de frente as estrelas,.
sem quebra-luz, sem óculos
sem abat-jour, sem lunettes,
sem medos e cheio de confiança.

Sonhei com tanta força,
que até o sonho sonhou comigo.
Sonhei com tanta, tanta força
que me entreguei sem olhar ao perigo.

Agora que é sempre noite
esteja o Sol, esteja a Lua no céu,
abro este livro todos os dias,
olho para ele sem olhar, leio-o sem o ver,
mas admiro-o por sentir o sonho mais do que eu.

Agora que é sempre noite,
nem vejo o que não queria ver,
nem as luzes da cidade,
nem a mim de óculos escuros.

Agora que é sempre noite...
deixem-me dormir,
deixem-me sonhar com o dia,
deixem-me sentir
e deixem-me ter esperança
e deixem-me colorir
e deixem-me não deixar de sonhar
«pois é fraqueza
desistir-se da cousa começada.»

Terça-feira, 9 de Abril de 1996
SAC – Belém - Lisboa