sexta-feira, 30 de julho de 2010

Ana


Sem me aperceber, se calhar
é de ti que sinto falta,
é dos teus lábios que o meu rosto precisa,
é por teus cabelos que as minhas mãos sofrem,
é por teu que o meu coração se repete.

Sem me aperceber, se calhar
é o primeiro beijo que anseio nos outros,
é a primeira carícia que sinto quando me afagam,
são os teus olhos que procuro
naqueles que nem reparam em mim.

Se calhar, sem me aperceber,
é de ti que sinto falta,
é dentro do teu coração que bate o meu,
é dentro do teu corpo a amnésia permanente
de todas as minhas feridas e pseudo-felicidades,
de todas as minhas lágrimas,
de todos os meus erros e minhas ingenuidades.

Terça-feira, 28 de Janeiro de 1997
SAC

domingo, 25 de julho de 2010

Um Certo Errante


Da vidraça do carro que conduzo, à chuva,
por sobre as rodas na paisagem longa, alentejana…

As nuvens cinzentas parecem hordas de bárbaros ao longe.

Cavalgando por sobre o horizonte imenso,
agitam imensas espadas imensas desembainhadas.
Derrotam inimigos audazes e inexistentes.
Antecipam naquela imagem surda a beberagem de um novo saque,
brilhante de oiros e praitas e coibres e de amantes as noites melhores.

Antecipam mudamente,
enquanto afinal corro pelos caminhos de alcatrão
a velocidades inconfessáveis e loucas.
Antecipam aquela sórdida véspera do prazer,
na noite da audácia na loucura e na destruição,
como um breve despiste rumo ao suicídio,
num tique brusco e voraz num volante guinando o carro louco em direcção ao absurdo…

Em vez do acidente…

Gota a gota, precipita-se a chuva,
obliquamente sobre o pára-brisas do meu automóvel
onde se defuntam esses bárbaros tornados nobres,
na velocidade de uma paragem brutal.

Parados não são bárbaros.
Bárbaros parados são mais nobres que nobres,
se dessa paragem fizerem alento e pausa
que outros não ousam.

Um bárbaro parado é um errante que finalmente acerta,

se o amor for a sua convicção,
se o amor for a bandeira que hasteia no coração.
Desabrida e completa.
Apaixonada e certa.

Se correr,
nessa corrida que o trouxe até parar,
sem medir sentinelas nem punhos que o tentavam esfocinhar,
sem contar medidas delas nem cunhos que o tentavam viciar,
sem aferir moedas, moerdas, merdas, medas vendidas, incendiadas,
medos horrorizados, viciados,
guiados, telecomandados,
mandados, subjugados,
peixes dados e não pescados,
peixes filhos das redes e não suados.
E pensar só por si nessa errância pura e livre…

Estará parado.
Mas dentro de si viverá para sempre uma corrida eterna.

Porque errado é estar parado na hora de correr.

Sábado, 06 de Dezembro de 2008
São João da Talha

Láonde


Lindo era o mar,
lindas as canções
que o fazem vibrar
como dois corações.

Lindo era o mar
e lindas as dunas
e lindas as gaivotas
e eram lindas as estrelas

cadentes no mar
os peixes-voadores
voam nos teus sonhos
e caem no paraíso:
os teus olhos.

Lindo era o mar
e lindo ficou o dia
em que os olhei pedindo candura,
em que os olhei e eles me olharam,
em que os olhei e eles me ficaram,
em que os olhei e me deram ternura.

Não me lembro do dia em que os teus olhos olhei,
porque quando olho os teus olhos não me lembro do dia.
Mas sei que não me lembro por me deslembrar deslumbrado
da cor do teu, daquele dia, porque teus olhos olhei.

Então não olhando, o mar era lindo.
Então não as vendo, as flores cresciam.
Então não olhando, o sol brilhava.
Então não as vendo, as gaivotas voavam lá...

Lá onde os sonhos cantam.
Lá onde as noites brilham.
Lá onde o vento plana.
Lá onde dança a liana.

Láonde, Láonde, Láonde:

Ilha de musgos e de vida,
vida de paz e de alegria,
alegria de voz ternurenta,
alegria que alegra e alimenta.


Alegria dos meus olhos
por ver teus olhos sorrir.
Alegria por teus olhos
fazer do mundo existir...

Assim terno, meigo, fraterno.
Assim amigo, cuidado extremo.
Ali audaz, risonho, feliz.
Aqui sentido, lágrima, um beijo.
Assim carinho, antigo, até tremo

de pensar, sentir, ver sem teus olhos.
Então só fugir de ver com os meus.
E de pensar, sentir, sem ver teus olhos.
Então só fugir de ver com os meus.

Láonde, Láonde, Láonde

Lá-onde lindo era o mar
e mesmo que não fosse,
por teus olhos,
o salgado seria doce.

Sábado, 17 de Fevereiro de 1996
SAC

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Fique Menina, Fique


Detesto como brincas com os meus carrinhos,
como os amandas uns contra os outros,
como os amandas contra a parede
como se fossem bolas de ténis,
como os estragas e desmanchas e como acabas com eles.

Detesto como gozas as minhas borbulhas,
como gozas o meu corpo e me chamas bigodes,
como ando vestido, como corro, como ando,
como se fossem as tuas críticas bocados de cérebro que me faltam,
como me crias preconceitos, invejas inúteis e como acabas comigo.

Detesto como levas de volta tudo o que me deste
como prova do teu amor, como amor da tua prova,
como foste o primeiro amor e a primeira desilusão,
como nem tudo é totalmente bom nem mau,
com nem tudo é, totalmente.

Detesto como as pessoas mudam de trato
como quando ando de gravata ou de calções,
como me chamam vagabundo por estudar,
como me chamam estúpido por deixar,
como me dizem que nada sei da vida,
como lhes respondo que a vida nada sabe de mim.

Detesto como sem curso não valho nada,
como isso não é verdade, como isso é mentira,
como se fossem os cursos que fazem os homens e não o contrário,
como se os copos bebessem a água,
como se o sol tapasse a luz que irradia das persianas.

Detesto como me beijas sem sentir,
como adormeces sem me falar,
como falas sem me convencer,
como se fossem extintas as palavras belas,
como me explicas que nunca fui teu.

Detesto que só o digas agora,
como tiveste coragem para esconder,
como tiveste azar de eu ser assim
como uma lágrima que cai sem parar,
como já não há espaço para amar.

Detesto que só restem os filhos
como entre nós não há nada,
como tenho que provar que ainda estou vivo,
como sou homem, empregado, amigo, cidadão e amante,
como já passou tanto tempo e não pára,
como já não pára de crescer aquela primeira branca.

Detesto como já não é a única,
como me enchem a cabeça as brancas,
como me torno careca e curvo,
como preciso de bengala e descanso,
como me abandonam as pessoas.

Detesto como morrem os meus amigos,
como morreu a minha mulher,
como me deixam os novos,
como me perseguem as batas e as dores,
como já não valho a minha vida,
como são ingratos comigo,
como sou inútil para eles.

A menina diz que não,
que os seus olhos não são bonitos
mas como os seus olhos, menina enfermeira
não há outros, nenhuns.
Através deles, claros e verdes,
vejo o amor que nunca tive
e o ódio que tenho deixo de o ver.

Sábado, 26 de Fevereiro de 2000
SAC

sábado, 3 de julho de 2010

Do Mesmo Mar


Hoje sentei-me naquele pontão
de pernas cruzadas a olhar o passado
que batia no meu rosto em forma de sal.

Sentei-me e calei-me naquele pontão
a tentar fazer do meu aquele nosso silêncio
numa saudade que se desfaz como as ondas lá em baixo.

Hoje calei-me naquele pontão
a perguntar pelos teus dedos
à minha mão vazia,
a perguntar pelos teus medos
à tua lua, que lá no alto, aparecia.

Calei-me e chorei naquele pontão.
Chorei a vez em que te abracei.
Chorei os teus cabelos lisos, voando.
Chorei o teu corpo ao meu colo, naquele pontão.

E numa lágrima
revi o mar, vasto, imenso
no teu rosto de menina.

E senti-me num pontão
do mesmo mar,
na mesma solidão
a olhar a lua,
a pensar no nosso silêncio.

Quarta-feira, 22 de Setembro de 1999
SAC