sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Esquecimento




Antes dos teus lábios
não sabia o sabor do esquecimento.
Antes dos teus lábios
só sabia pensar e nada mais.
Antes dos teus lábios
a minha vida era um pobre lamento.


Lamento escondido pelo riso,
encoberto pelo equilíbrio,
por debaixo de um lençol de gargalhadas.


Já não me lembrava como beijar
a sós com alguém.
Já não me lembrava como beijar
a sós comigo.
Já só me lembrava como evitar
a presença de outra também.


Mas nesse dia esqueci-me do tudo
e do nada que tanto me fez sofrer.
Nesse dia esqueci-me do mundo,
do tempo, do espaço e da palavra querer.


O passado esqueceu-se de mim
e eu fiquei tão contente
que o mar era o céu onde estávamos
quietos, num beijo de areia.


Quinta-feira, 28 de Agosto de 1997
SAC

Dilúvio



Estou perdido, às voltas de um triste,
sem rumo bem no fundo de dois túneis,
onde o sol já brilha menos que a noite
e onde estalactites são armas em riste.


Sem que eu soubesse ou calculasse
o mundo ruiu, a Lua endoideceu.
Andava às voltas e volta como eu.
Marés subiram sem que a ave voasse,
tornou-se em peixe e a Terra morreu.


Sem que eu soubesse ou calculasse
em sonho a cidade morreu também,
pois os homens sempre foram de pedra
e eu sempre fui feito de sonhos
e esse sonho também era meu.


Nada fiz p’ra que isto acontecesse.
Andei depressa quando os pés não podiam,
subi montes e montanhas de sofrer,
quando o meu coração queria descer um rio,
 queria deitar-se no mar,
 queria despir-se contigo.


Só estou sentado na poltrona vaga,
sozinha cadeira, só de ninguém,
sem ti do meu lado, sem ti meu bem,
à espera de mim, à espera de alguém.


Nada fiz p’ra que isto acontecesse.
Andei depressa quando os pés não podiam,
subi montes e montanhas de sofrer,
quando o meu coração queria descer um rio,
 queria deitar-se no céu,
 queria dormir contigo,
 queria dormir sozinho.


Quinta-feira, 18 de Julho de 1996
SAC

domingo, 16 de outubro de 2011

Assim se Faz Um Velho



Assim se faz um velho:
canudos e livros esquecidos,
paredes e lamentações vãs,
salas e anfiteatros desguarnecidos,
tinta de canetas muitas e muitas cãs...


Comboios e autocarros apinhados,
descidas que já subi,
vidas que já vivi,
subidas donde já caí,
vendedores e mendigos calados...


Quilómetros percorridos... porque os fizeste?
Furiosas mulheres... por quem me tomaram?
Lábios de relações inférteis... porque os beijaste?


Tenho o rosto macerado de farsas,
os meus olhos são buracos por onde entraram muitos outros,
a minha boca está fechada, pejada de cicatrizes,
pela minha testa passaram centenas de arados
e as minhas orelhas são covas abertas por todos.


e assim as pessoas
e assim elas, aquelas
aponto com dedo acusador.


e assim me fazem velho:
beijos e beijos esquecidos,
festas e carinhos guardados
nas gavetas por latidos
de cães e sentimentos anafados


pela gula da inconsciência,
pela ingratidão do esquecimento,
pela frieza de um fingir,
pela conversa que não o é,
pela cobardia do não gostar,
pela triste sinfonia de perder uma pessoa
por deixar de sentir um sentimento
por viver do passado, do medo e não do momento.


e assim as pessoas
e assim elas, aquelas
aponto com dedo acusador:
estou velho por causa delas.


Quinta-feira, 18 de Outubro de 1996
SAC