sábado, 30 de maio de 2009

A atitude divina

Não era santa não,
pois que a sua bondade
era mais que milagre.

Não era profetisa não,
que a tal não ascendia
pela sua real humildade.

Não era a divindade em nome,
mas que à direita de Deus pai
está, não tenho dúvidas.

E quem as tenha
deve ocupar a esquerda de belzebu,
lugar das mil súplicas,
das não atendidas almas,
as dos profetas da desgraça,
da vendeta e dos critérios.

Mas por mais mistérios,
por mais irados
e mais histéricos que sejam...

Não passarão
de idades, fases quentes e não pensadas.

Não passarão
de momentos efémeros, injúrias inchadas.

E passarão
de ouvido a ouvido,
sem o coração ouvir, indiferente,
sem a cabeça sentir, descontente,
sem que a bílis se não torça, se não tente...

Ah vovó...
Que saudades tenho eu de Ti.

Nada mais tenho que dizer...
Vou tentar seguir-te.


Terça-feira, 16 de Janeiro de 1996
SAC

sábado, 23 de maio de 2009

Um Chão de Queda


Tentei matar-me,

mas a corda era de areia.

Já não bastava o mundo o ser.

Ser castelo de cartas,

muralha de dominó a crescer,

água a ferver...


em labaredas de amor

que estaladas dão,

não de vinho e prata,

mas agridoce que mata

as veias ao coração.


Que um raio as parta

por fazer correr o sangue que o ata,

apaixonado pela feição

da dona a quem me dei de amor.


Tentei matar-me,

mas a corda era de aço.

Já não bastava o mundo o ser.

Ser betão, chumbo e cimento,

um pobre lamento,

eucaliptal vampiro

e o sangue era meu...


De que veias o trouxe não sei.

De que ventre as tirei... talvez.

Mas sei, isso sei, é certo,

que o sangue que agora é seiva

de um triste eucalipto vampiro

que faz agora seu o suspiro,

faz também o amor incerto

nas veias que sempre atiro

para um chão que sofre de queda.


Mas o que logo penso e não retiro

e que é certo que incerto não é decerto,

é que a alma do amor não firo,

pois é por ela que ainda respiro,

pois é dela que a minha é viva,

e o que sinto por ela ao longe já o penso de perto.


Tentei matar-me,

mas a pólvora estava seca.

Já não bastava o mundo o estar.

Estar lógico, racional e científico,

sendo eu ilógico, irracional e sabonete dentífrico:

não sirvo para nada


ou serei


o único inteligente

num mundo ininteligível


ou serei


o único louco

num mundo de doidos


ou serei


o único leitor

num mundo ilegível.


Tentei matar-me,

mas o amor é demasiado bonito,

não dá lugar ao ódio

e é tão infinito.


Tentei matar-me,

mas o amor é tão bonito.

Pinta-me de cores

quando estou a preto-e-branco.

Suaviza-me as dores

quando olho para a Lua e me vejo

montado num quarto crescente,

crescente o desejo, o ensejo...

Se a tivesse...

Se tivesse o amor...


Tentei mandá-lo embora,

mas só iria se eu fosse também.

Tentei matá-lo de hora a hora,

mas só morreria se eu morresse também.


Domingo, 10 de Março de 1996

SAC

sábado, 16 de maio de 2009

E se o Mundo Fosse ao Contrário

E se o mundo fosse ao contrário.
E as pessoas fossem o que são e não o que parecem.
E os sonhos voassem como são e não como aparecem.
E as pessoas fugissem daquilo que não são, deixando-se viver,
deixando-se ver,
deixando-se ver viver.

E se o mundo fosse ao contrário.
E os sonhos fossem os corpos em vez das almas.
E os sonhos fossemos nós em vez de alguém
que deixamos morrer,
que deixamos de ver,
que deixamos de ver morrer. E somos nós!

E se o mundo fosse ao contrário.
E os sonhos fossem beber na fonte da realidade.
E as pessoas voassem, libertas de pesadelos.
E os sonhos fugissem como bocas para a verdade.
E as pessoas se desenrolassem como novelos.

E os sonhos fossemos nós em vez de alguém
que deixamos morrer, dentro de nós,
que deixamos de ver, olhos de Édipo furados,
que deixamos de ver morrer, dentro dos outros.

Ou vemos e nada fazemos!?
Ou temos consciência e não coragem.
Ou somos cobardes e não pessoas
e matamos os sonhos da realidade.

E agora, que o mundo seja ao contrário.
Agora que os olhos que nunca mentiram
sejam todo o corpo real.
Agora que os olhos que nunca se viram
sejam reflexo na realidade
e não espelho partido...

Má-sorte ser humano
e público de um triste espectáculo:
Almas lindas que amo...
tornadas mendigas que não aceitam as suas moedas.


Segunda-feira, 15 de Julho de 1996
SAC

sábado, 9 de maio de 2009

Non Sense

Um dia vi uma pedra.

Era da calçada, mas lisa como uma maçaneta.

Estava à espera de autocarro.


No segundo dia peguei num lápis.

Era preto, mas escrevia como se fosse uma caneta.

Atirei-o ao chão e ele partiu-se.


No terceiro dia apanhei o tecto.

Tirei-lhe a coleira e dei-a ao meu senhorio careta.

Ele fugiu e o tecto caiu-me em cima.


Ao quarto dia segui uma formiga.

Até que ela voou e apercebi-me que era uma borboleta.

Nesse dia apanhei o comboio.


Ao quinto dia lavei as mãos

e soube que uma ovelha tinha caído numa sarjeta.

Nesse dia fiz pára-quedismo.


Ao sexto dia saí finalmente do comboio.

Tinha adormecido e o fiscal era um forreta.

Nesse dia morreste e deixei de te poder amar.


Ao sétimo dia apercebi-me

que não era eu, o único pateta

e que por vezes,


há coisas na vida que não fazem sentido.



Quinta-feira, 30 de Janeiro de 1997

SAC

Foste embora

Quando entraste naquela sala
perdeste o brilho e a luz
perdeste o sorriso e a força
perdeste-te e a mim também.

Quando te foste embora
perdeste a lucidez e o nada,
perdeste tudo e a razão,
perdeste a tua vez e a minha.

Quando rodaste a maçaneta
percebi que era o fim
e o princípio de um mim
e que não era de ti que tu gostavas.

Quando bateste com a porta
percebi que tinhas deixado entrar
a tristeza e a solidão,
a fraqueza e a negação,

para além do desespero,
para além da faca e do revólver,
para além de mim.
Sim, esse agoniante eu que voltei a ser.

Quando te foste embora
percebi que era o fim
para além do desespero,
para além da faca e do revólver,
para além desse eu agoniante que voltei a ser.

Quando te foste embora
percebi que era o fim
e que não era de ti que tu gostavas
nem de mim, nem de mim.


Quarta-feira, 24 de Outubro de 1996
SAC