sábado, 23 de maio de 2009

Um Chão de Queda


Tentei matar-me,

mas a corda era de areia.

Já não bastava o mundo o ser.

Ser castelo de cartas,

muralha de dominó a crescer,

água a ferver...


em labaredas de amor

que estaladas dão,

não de vinho e prata,

mas agridoce que mata

as veias ao coração.


Que um raio as parta

por fazer correr o sangue que o ata,

apaixonado pela feição

da dona a quem me dei de amor.


Tentei matar-me,

mas a corda era de aço.

Já não bastava o mundo o ser.

Ser betão, chumbo e cimento,

um pobre lamento,

eucaliptal vampiro

e o sangue era meu...


De que veias o trouxe não sei.

De que ventre as tirei... talvez.

Mas sei, isso sei, é certo,

que o sangue que agora é seiva

de um triste eucalipto vampiro

que faz agora seu o suspiro,

faz também o amor incerto

nas veias que sempre atiro

para um chão que sofre de queda.


Mas o que logo penso e não retiro

e que é certo que incerto não é decerto,

é que a alma do amor não firo,

pois é por ela que ainda respiro,

pois é dela que a minha é viva,

e o que sinto por ela ao longe já o penso de perto.


Tentei matar-me,

mas a pólvora estava seca.

Já não bastava o mundo o estar.

Estar lógico, racional e científico,

sendo eu ilógico, irracional e sabonete dentífrico:

não sirvo para nada


ou serei


o único inteligente

num mundo ininteligível


ou serei


o único louco

num mundo de doidos


ou serei


o único leitor

num mundo ilegível.


Tentei matar-me,

mas o amor é demasiado bonito,

não dá lugar ao ódio

e é tão infinito.


Tentei matar-me,

mas o amor é tão bonito.

Pinta-me de cores

quando estou a preto-e-branco.

Suaviza-me as dores

quando olho para a Lua e me vejo

montado num quarto crescente,

crescente o desejo, o ensejo...

Se a tivesse...

Se tivesse o amor...


Tentei mandá-lo embora,

mas só iria se eu fosse também.

Tentei matá-lo de hora a hora,

mas só morreria se eu morresse também.


Domingo, 10 de Março de 1996

SAC

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