sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Choro na Soleira da Porta




Choro na soleira da porta.
Não sei porque choro,
ou talvez saiba,
talvez julgue saber.


Choro defronte da porta.
Não sei porque choro.
Passa uma rapariga, para mim olha
e me vê a chorar, mas passa,
passa sem me beijar, falar...


Choro atrás da porta.
Não sei porque choro.
Passa um homem, nem repara em mim,
ou não quis e passa,
passa sem me cumprimentar...


Choro olhando a porta, escorregam-me as lágrimas.
Não sei porque choro.
Passa um rapaz, não me fala,
não me fala e vai-se embora...


Choro encostado à porta, escorrego com a dor, atroz...
Não sei porque choro.
Passa uma mulher, no jardim,
ela é bonita, mas não me liga
e passa sem me acariciar...


Não sei porque choro,
ou talvez saiba, 
talvez julgue saber...
choro porque pintei mal a porta,
esborratei, estraguei a porta...


Mas é pouco para eu chorar,
mas então: - Porque choro?
Porque todos os transeuntes conhecia, com eles falo,
mas nenhum dos passantes me dirigiu a palavra.


Choro, de tudo choro.
Choro, porque de tudo choro.




Julho de 1993
SAC

sábado, 5 de novembro de 2011

O Tempo Passa




O tempo passa,
o café arrefece
mas só se esquece
do tempo quem passa
atrás do tempo...


São aqueles
a quem o tempo ficou
o café arrefeceu
se esqueceu deles,
daqueles...


a quem o tempo
se tornou
custoso, pesaroso
por causa dos outros.
Forçoso, doloroso
por culpa dos outros.
Desespero, exaspero.
Por prazer dos outros
estou entre a espada e a parede.


A espada de bronze afiada.
A parede de rede.
A rede envolta em cimento
... dum prédio que ali estava.


Voltei à realidade
e... lá estava:


A faca da manteiga
apontada, afiada a mim,
por trás de mim;
por trás a parede do café, meiga...


Mais meiga que a espada.
E empurro a parede.
Nunca a espada afinada.
Empurro a parede.


O tempo passa (o esforço)
O café arrefece (mimoso)
Mas só se esquece
do tempo quem passa
atrás do tempo.


Novembro de 1994
SAC

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Esquecimento




Antes dos teus lábios
não sabia o sabor do esquecimento.
Antes dos teus lábios
só sabia pensar e nada mais.
Antes dos teus lábios
a minha vida era um pobre lamento.


Lamento escondido pelo riso,
encoberto pelo equilíbrio,
por debaixo de um lençol de gargalhadas.


Já não me lembrava como beijar
a sós com alguém.
Já não me lembrava como beijar
a sós comigo.
Já só me lembrava como evitar
a presença de outra também.


Mas nesse dia esqueci-me do tudo
e do nada que tanto me fez sofrer.
Nesse dia esqueci-me do mundo,
do tempo, do espaço e da palavra querer.


O passado esqueceu-se de mim
e eu fiquei tão contente
que o mar era o céu onde estávamos
quietos, num beijo de areia.


Quinta-feira, 28 de Agosto de 1997
SAC

Dilúvio



Estou perdido, às voltas de um triste,
sem rumo bem no fundo de dois túneis,
onde o sol já brilha menos que a noite
e onde estalactites são armas em riste.


Sem que eu soubesse ou calculasse
o mundo ruiu, a Lua endoideceu.
Andava às voltas e volta como eu.
Marés subiram sem que a ave voasse,
tornou-se em peixe e a Terra morreu.


Sem que eu soubesse ou calculasse
em sonho a cidade morreu também,
pois os homens sempre foram de pedra
e eu sempre fui feito de sonhos
e esse sonho também era meu.


Nada fiz p’ra que isto acontecesse.
Andei depressa quando os pés não podiam,
subi montes e montanhas de sofrer,
quando o meu coração queria descer um rio,
 queria deitar-se no mar,
 queria despir-se contigo.


Só estou sentado na poltrona vaga,
sozinha cadeira, só de ninguém,
sem ti do meu lado, sem ti meu bem,
à espera de mim, à espera de alguém.


Nada fiz p’ra que isto acontecesse.
Andei depressa quando os pés não podiam,
subi montes e montanhas de sofrer,
quando o meu coração queria descer um rio,
 queria deitar-se no céu,
 queria dormir contigo,
 queria dormir sozinho.


Quinta-feira, 18 de Julho de 1996
SAC

domingo, 16 de outubro de 2011

Assim se Faz Um Velho



Assim se faz um velho:
canudos e livros esquecidos,
paredes e lamentações vãs,
salas e anfiteatros desguarnecidos,
tinta de canetas muitas e muitas cãs...


Comboios e autocarros apinhados,
descidas que já subi,
vidas que já vivi,
subidas donde já caí,
vendedores e mendigos calados...


Quilómetros percorridos... porque os fizeste?
Furiosas mulheres... por quem me tomaram?
Lábios de relações inférteis... porque os beijaste?


Tenho o rosto macerado de farsas,
os meus olhos são buracos por onde entraram muitos outros,
a minha boca está fechada, pejada de cicatrizes,
pela minha testa passaram centenas de arados
e as minhas orelhas são covas abertas por todos.


e assim as pessoas
e assim elas, aquelas
aponto com dedo acusador.


e assim me fazem velho:
beijos e beijos esquecidos,
festas e carinhos guardados
nas gavetas por latidos
de cães e sentimentos anafados


pela gula da inconsciência,
pela ingratidão do esquecimento,
pela frieza de um fingir,
pela conversa que não o é,
pela cobardia do não gostar,
pela triste sinfonia de perder uma pessoa
por deixar de sentir um sentimento
por viver do passado, do medo e não do momento.


e assim as pessoas
e assim elas, aquelas
aponto com dedo acusador:
estou velho por causa delas.


Quinta-feira, 18 de Outubro de 1996
SAC

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Empatia



Olho-te e sei o que pensas.
Olhas-me e sei o que pensas.
Foges com o olhar e sei
em que acabas de pensar.


Dizes uma palavra, solta.
Dizes uma frase, profunda,
e eu acabo por dizê-la
um mês, dois dias, no minuto seguinte
com um sorriso que volta.


Chegamos a dizer a mesma coisa
no mesmo segundo, a mesma palavra
no mesmo milésimo, a mesma letra
e o som, a expressão, o riso.


Parece tudo tão perfeito.
Parece tudo tão bonito.
Parece tudo tão eterno.


E não é perfeito, porque estás longe.
E não é bonito, porque só vejo saudade.
Mas é eterno.


Porque tenho memória.
Porque tenho coração.
Porque te tenho dentro de mim.


Mãos nas mãos,
olhos nos olhos,
alma no espelho
e somos irmãos.


De carta em carta
de pé o alcatrão,
os outros vêem-se,
nós não.


Olhos nos olhos,
alma no espelho.
Falamos. E somos gémeos.


Missivas de olhos vendados
palavras de corpos apartados.
Falamos. E não deixamos de o ser.




Perto de ti, sou feliz,
sinto-me bem e apetece-me o Sol.
Perto de ti, sou contente,
paro, olho e escuto em volta.
Perto de ti, sou turista,
filmo e amo as pessoas.


Contigo, sinto-me completo,
nem que seja por um minuto.
Contigo, sinto-me completo,
nem que seja por um sorriso.


Contigo... sinto-me bom, bem, realizado.
    sinto-me bonito.
    sinto-me eterno.


No entanto...


Nunca serei perfeito.
Nunca fui bonito.
Mas sou eterno.


Porque tens memória.
Porque tens coração.
Porque me tens dentro de ti.




Domingo, 18 de Fevereiro de 1996
SAC

sábado, 3 de setembro de 2011

Dura Realidade


Estou de pé à espera de autocarro.
Com uma mão bebo a minha chávena,
com outra tiro roupa de um armário
e faço as malas para fora daqui.

Cheguei à conclusão que a chávena
era de louça e não se podia beber
e que o armário era imaginário
quando um autocarro me encheu as calças de água.

Enquanto os outros, desesperados,
gritavam, berravam, coitados,
eu sorri, conformado: não havia nada a fazer.

Quarta-feira, 6 de Novembro de 1996
SAC

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

E se o Mundo Fosse ao Contrário


E se o mundo fosse ao contrário.
E as pessoas fossem o que são e não o que parecem.
E os sonhos voassem como são e não como aparecem.
E as pessoas fugissem daquilo que não são, deixando-se viver,
deixando-se ver,
deixando-se ver viver.

E se o mundo fosse ao contrário.
E os sonhos fossem os corpos em vez das almas.
E os sonhos fossemos nós em vez de alguém
que deixamos morrer,
que deixamos de ver,
que deixamos de ver morrer. E somos nós!

E se o mundo fosse ao contrário.
E os sonhos fossem beber na fonte da realidade.
E as pessoas voassem, libertas de pesadelos.
E os sonhos fugissem como bocas para a verdade.
E as pessoas se desenrolassem como novelos.

E os sonhos fossemos nós em vez de alguém
que deixamos morrer, dentro de nós,
que deixamos de ver, olhos de Édipo furados,
que deixamos de ver morrer, dentro dos outros.

Ou vemos e nada fazemos!?
Ou temos consciência e não coragem.
Ou somos cobardes e não pessoas
e matamos os sonhos da realidade.

E agora, que o mundo seja ao contrário.
Agora que os olhos que nunca mentiram
sejam todo o corpo real.
Agora que os olhos que nunca se viram
sejam reflexo na realidade
e não espelho partido...

Má-sorte ser humano
e público de um triste espectáculo:
Almas lindas que amo...
tornadas mendigas que não aceitam as suas moedas.

Segunda-feira, 15 de Julho de 1996
SAC

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Segredo


Esse sorriso cheio de calor
que me derrete a alma
lembra aquela noite
que só nós sabemos
e que de tão bela
só sabe de nós.

Segunda-feira, 29 de Março de 2004
Benfica

Berlinde


Berlinde! Gostava de ser como tu...

O teu mundo também é redondo, mas é simples.
O teu vidro é claro como as ideias dignas.
As tuas cores são límpidas como a água.
Os teus sorrisos são as tuas voltas e voltas sem parar.

O teu mundo é uma estrada que desce onde sobes.
O teu mundo é feliz sem abafadores.
O teu mundo é contente...

Não tens que amar ninguém
Não tens que ter bons momentos
para seres feliz...
Não tens que ter boa memória
para te lembrares deles...

Não és obrigado a gostar de seres humanos.
Não és obrigado a gostar da indiferença deles.
Não és fechado pela ingratidão
de uma pergunta que não se faz,
de um sorriso que não se olha,
de um abraço que não se dá.

Berlinde, redondo e insensível.
Gosto de ti assim... previsível.

Roda, roda sempre, sempre sem parar.
Não pares, pára nunca para quem está a olhar.
Sobe aos montes, desce aos rios.
Salta, desprende o teu sorriso
e anda, anda sempre sem pensar

nos rostos ingratos que te corcomem,
nos meus olhos que acabam de chorar,
nas vidraças partidas onde correm os sonhos,
nas bolachas derretidas por chamas de amor.

Não odeias, não gostas, não choras,
não ris porque te chamas sorriso.
Berlinde é alcunha que te dão
por não te saberem desenhar na alma de ninguém.

Berlinde! Agora que faço estas linhas
porque choras na minha mão?
porque desvelas a tua tristeza?
porque revelas a tua amargura?
porque olhas com teu olho de vidro?

Largo-te e és felicidade.
Deslizas pelos meus dedos e foges.
Rodas sem os teus medos e dormes.

Rodas sem parar parado.
Danças sem ligar gingado.
Tocas tudo o que te apetece.
Ligas só a quem te conhece.

Berlinde! Gostava de ser sorriso.

Sábado, 1 de Março de 1997
SAC

Carta de Um Vidente a Um Cego


“Nesse dia estava Sol,
mas um Sol estranho
com a luz quase inerte e mole
como se tivesse levado um banho
de nuvens de pó-de-talco.

E estava escuro, como se essas nuvens
fossem já encobertas
de outras nuvens de pó de um palco,
onde o Sol fazia o papel de nuvem.

As nuvens eram incapazes de fazer de Sol,
porque além do Sol já nuvem ser,
as nuvens nunca foram o Sol
e o Sol vestido de nuvem deixou de se ver.

Nesse dia estava o Sol
pendurado como sempre
no tecto de um céu estrelado.
Demasiado estrelado até
para que se pudesse ver a noite.

O Sol estava nesse dia.
Pousado num chão invertido,
dele estavam a cair bocados,
em cima de mim e de toda a gente.
Eram raios suaves e quentes
por cima de mim, por toda a parte.

Nesse dia estava ao Sol,
mas ele estava mole,
estava cheio inerte,
estava escuro e estranho.

Olhei mais uma vez o Sol, achei-me: estranho e escuro
e achei-o muito estranho e muito escuro.
Tirei os óculos. Percebi. Eram de-sol.

Então sem óculos vi,
vi o que não vira antes,
vi o Sol e o céu claros,
vi as cores e as flores,
do eclipse o visível
e do invisível o eclipse.

E vi sorrisos estampados
em rugidos adamastores
e vi dentes cariados
de tanto sorrir como dantes.

Senti, senti o cheiro
de boninas, de floresta, de pinheiro,
de primavera docente que vem primeiro,
de argila discente que se molda depois,
de areia, de mar e de montanha,
de rios que nascem desde que morram,
de rios que vivem desde que corram.

Toquei, toquei os animais,
subi a pedestais,
desci ao horizonte
e andei por lá sem cair
e sem me aperceber
de que viajava numa lambreta,
que afinal era pateta,
que afinal por mais que custe,
não era num avião que voava
e quanto difícil é voar de bicicleta.

Voltei então a subir do horizonte, do futuro.
Voltei então a subir ao pedestal, aos animais.
Só eles percebem a mágoa de um peripateta maduro,
só eles percebem como é difícil viver sem sonhar mais.

Só eles porque os humanos,
de tanto animais serem,
de animal não têm nada:
nasceram diferentes,
diferentes hão-de morrer,
mas morrerão diferentes
se alguém os perceber.

Se souberem ler que te digam
estas linhas que foram por ti.
Se só souberem ver que te digam,
que estas manchas são de sonho.
Mas se souberem sentir que te digam
que morri, mas morri diferente.

Porque encontrei uma donzela
que via alegria,
sentia o cheiro à natureza,
tocava a melancolia,
gostava da beleza
e ouvia os sonhos
beijando a harmonia.

E encontrei uma donzela,
que finalmente me percebeu.
Eu voava como ela,
éramos iguais de bicicleta.
Ela voava como eu e o sonho
corria como uma gazela.

E o sonho brincava, ao Sol.
E o sonho brincava, na neve.
E o sonho nevava, em ti.
E o sonho passava, por mim.

E naquela tarde de Sol e sonho,
as tuas palavras eram de Sol
e tu eras feita de sonho
num parapeito de ventos
onde assentados estávamos,
misturando pensamentos
e decidindo comedimentos
à nossa alienação.

E contigo fartos de batuques,
assimetrias artificiais,
dioptrias costumeiras,
dia-a-dias citadinos.

Ouvi, ouvi o vento
a bater nas bandeiras
e as bandeiras voavam
e as bandeiras enchiam e esvaziavam.

Ouvi, ouvi o vento
a soprar nas bandeiras
e as bandeiras voavam
e as bandeiras enchiam e esvaziavam.

Ouvi, ouvi o vento
a soprar, a soprar
pelas folhas que sussurravam
parecendo o mar
e as bandeiras enchiam e voavam.

E as bandeiras
eram as tuas roupas
que voavam sem parar.
E os teus sonhos
uma gaivota
que já pousou no mar.

E as bandeiras
eram o teu corpo
quer voava sem roupa tua.
E os teus sonhos
uma gaivota
que já pousou na Lua...

E quando veio a noite
as bandeiras desapareceram
assim como tu e eu,
assim desapareceu
o pesadelo, a cidade.

E nessa noite tudo era noite:
os martelos, as sinfonias e os apitos,
os candeeiros, os holofotes e os gritos,
as persianas, as prateleiras e os pirilampos,
as montanhas, as casas e os campos.

E nessa noite ninguém me importou:
o guarda, o fiscal e o barbeiro,
o médico legista e o polícia sinaleiro,
o dentista, o vendedor e o político,
nem o trabalhador, nem o ventríloquo.

E nessa noite ninguém te importunou.
Conseguias ouvir o que eu via no céu.
Conseguias sentir o mesmo que eu.
Juntaste as estrelas e fizeste um candeeiro.
Juntei os nossos medos e fiz um quebra-luz.

Para que não fugissem os sonhos.
Para que não fugissem as estrelas.
Para que não nos queimássemos
e aos nossos olhos.
Para que não nos abatessemos
e ao nosso castelo.

É de cartas nós sabemos,
mas de cimento nós cremos.
É de cartas, é de cartas,
mas de sonhos, mas de sonhos.

Quiçá seja o único ponto em que nos entendemos,
mas é o sonho, mas é o sonho
de parar e sonhar porque sim,
de parar e sonhar porque não.

De coração iluminado estou agora
por saber que alguém sonha como eu.
De coração iluminado a toda a hora,
eu no meu canto do mundo e tu no teu.

És fruto da natureza e da beleza de que gosto
e eu sou tinta da memória do esquecimento.
És de uma estrela que do céu pousou a meu lado
e eu sou de um dólmen transformado em menir.”

Abro este livro
todos os dias
no mesmo dia.

Leio estas palavras
todos os dias
com o mesmo sentir.

Por isso, os dias que passam
já não passam mais.
Por isso os dias que ficam
são aqueles em que sonhei demais.

Abro este livro
todos os dias
no mesmo dia.

Tento-o fechar em vão.
Fica aberto em minha alma.
Fica aberto em meus olhos fechados.
Fica aberto no meu coração.

Leio estas palavras
todos os dias
com o mesmo sentir.

Tento-as esquecer em vão
todas as noites
com a mesma forma de mentir.

Tento esquecer que sou cego,
mas esqueço-me que para me esquecer,
é preciso ver outra vez,
é preciso sonhar outra vez, mais.

Mas é preciso não esquecer
que foi por sonhar que ceguei:
olhei de frente as estrelas,.
sem quebra-luz, sem óculos
sem abat-jour, sem lunettes,
sem medos e cheio de confiança.

Sonhei com tanta força,
que até o sonho sonhou comigo.
Sonhei com tanta, tanta força
que me entreguei sem olhar ao perigo.

Agora que é sempre noite
esteja o Sol, esteja a Lua no céu,
abro este livro todos os dias,
olho para ele sem olhar, leio-o sem o ver,
mas admiro-o por sentir o sonho mais do que eu.

Agora que é sempre noite,
nem vejo o que não queria ver,
nem as luzes da cidade,
nem a mim de óculos escuros.

Agora que é sempre noite...
deixem-me dormir,
deixem-me sonhar com o dia,
deixem-me sentir
e deixem-me ter esperança
e deixem-me colorir
e deixem-me não deixar de sonhar
«pois é fraqueza
desistir-se da cousa começada.»

Terça-feira, 9 de Abril de 1996
SAC – Belém - Lisboa

sábado, 30 de julho de 2011

Há um Lugar


Há um lugar azul
onde dança a Lua
e o Sol se desfaz
nascendo em laranja.

Há um lugar sereno
no teu coração
para onde regresso
voando de um sonho.

Há uma praia linda
cheia de coqueiros
com areia de todas as cores
e núvens claras de todas as formas.

Há um paraíso no teu olhar
onde tudo isto acontece
sem precisar viajar.

Oceano Atlântico (Recife - Lisboa)
Sexta-feira, 16 de Abril de 2004




sábado, 23 de julho de 2011

O Mundo que Não Sabíamos


As luzes reflectidas pelo Tejo
sempre aguardaram por nós
naquele passeio, naquela noite.

Os nossos beijos demoravam-se
sempre à mesma beira
do mesmo rio, junto ao mar.

Havia saudades que se desfaziam
como estrelas cadentes precipitadas
que te perseguiam, como desejos.

Eram meus os nossos olhos
que se percorriam e desejavam
num só tempo e numa só vontade.

E tudo isto
eu descubro
quando te beijo.

Quinta-feira, 22 de Janeiro de 2004

sábado, 9 de julho de 2011

Não Há Nada que Pedir Desculpa / Todas As Mãos Pegam em Pedras


Passaram dois dias e um mês.

E só depois me apercebi que não sou um gato maltês.
E só depois dei conta que lhes posso chamar nomes.
E só depois acordei para o mundo e lhes respondi.
E só depois me apercebi de que todas as mãos pegam em pedras.

Mesmo as minhas... pegam em pedras...!

Eu não queria. Juro.
Mas o meu sangue jorra em torrentes.
Mas o meu crânio abre-se e vêem-se os últimos miolos.
Mas os meus pulmões derretem e vê-se o fumo dos cigarros dos outros.
E as minhas pernas gangrenam e tremem banhadas em vermelho.

Atiraram-me tantas pedras
que só me restam as mãos...
para as atirar de volta.

(se me tivessem deixado boca, pedia desculpa)


Quinta-feira, 3 de Abril de 1997
SAC

domingo, 5 de junho de 2011

Que Gostasse


Não pedi para chover
mas chove lá fora.
Não pedi para que fosse água a cair,
mas é água que cai.

Não pedi para nascer
mas aqui estou eu à tua espera.
Não pedi que fosses embora
embora sofra como se fosse
quando os meus olhos
veêm os teus desaparecer.

Não pedi que chovesse...
Não pedi que parasse...
Não pedi que voltasse...
A chover docemente no teu rosto.

E não pedi
que o teu rosto
chovesse no meu...
mas choveu.

E não pedi
que o teu sorriso
voltasse no meu...
mas voltou.

E não pedi
que os meus olhos
parassem nos teus...
mas pararam.

Domingo, 26 de Março de 2000
S.A.C.

sábado, 28 de maio de 2011

O Teu Sorriso


Nele vejo a doce canção do mar
e a ténue neblina da inspiração divina
como se estivesse a dançar, com a Lua...
como se estivesse a parar, o mundo...
como se estivesse a escutar, o infinito...

Nele sinto os lençóis de uma cama
onde foi derramado açúcar diamantes
como se estivesse o luar, a dançar,
como se estivesse o mundo, a parar,
como se estivesse o Sol, a nascer,
como se estivesse o ódio, a morrer...

Nele tocas viola aos deuses,
nele tocas os deuses com a morte,
nele tocas os homens com a imortalidade.
Dele recebo um beijo às vezes,
dele recebo um abraço tão forte
e dele tenho sempre saudade.

Quinta-feira, 8 de Maio de 1997
SAC

sábado, 14 de maio de 2011

Este Poema É de Graça


Às vezes pergunto-me
quantas veias vale um coração.
Às vezes pergunto-me
quantas moedas vale um poema.
E logo respondo
que o coração sente sem veias
e que o poema sofre sem moedas.

O poema chora sem moedas.
O poema chora com moedas.
Mas com moedas choro eu
por ele também.

Por isso,
este poema é de graça,
este poema - oiçam bem - é de graça.

Aproveitem.

Poucos sentimentos
são desperdiçados desta maneira.

Segunda-feira, 13 de Outubro de 1997
SAC

sábado, 30 de abril de 2011

Deixa-me Dizer-te

Deixa-me dizer-te
que nem sempre é possível
saberes quem sou.

Deixa-me dizer-te
que nem sempre é azul
o lugar para onde vou.

Deixa-me contar-te:
às vezes sou montanha
e não te vou ouvir,
às vezes sou o mar
e não te vou sentir,
às vezes sou o nada
e não tenho tempo nem espaço.

Para quê um abraço?
Se sou quem esqueces,
se sou quem por ti passa,
se sou quem também chora.

Às vezes sou um cavalo negro que galopa para a morte.
Às vezes sou um coelho branquinho dissecado no chão.
Às vezes perco coisas, perco pessoas e perco-me também
e às vezes as minhas palavras
cortam como lâminas de punhais,
desabam como neve em avalanche
e caem em cima de almas inocentes.

Tudo o que acabo de dizer é verdade.
Se o teu nome é medo, vai-te embora.
Toma. Leva a indiferença.
(sempre foram companheiras)
Se o teu nome é coragem, senta-te ao meu lado.
Pode ser que te ame também.


Terça-feira, 25 de Fevereiro de 1998
SAC

sábado, 26 de março de 2011

Portugal


Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!

*

Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para o meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...

Alexandre O'Neill
1924-1986

sábado, 5 de março de 2011

Marchamos


Marchamos
contentes ou tristes
marchamos
sentados no vazio da luta
marchamos
sempre e sempre
marchamos
sem saber para onde
se para a saudade ou para o arrependimento
não sabemos.

Mas marchamos
sempre parados
marchamos
sem rumo ou sentido
marchamos
sem saber porquê
se porque é demais ou já é de menos
não sabemos.

Mas marchamos
sempre ignorantes
marchamos
sem motivo nem vontade
marchamos
sem saber contra quem
se contra a indiferença ou contra a memória
não sabemos.

Somos indiferentes.
Sem saber.
Marchamos.

E se estiver a chover,
ficamos em casa.

Quinta-feira, 20 de Fevereiro de 2003
SAC

quarta-feira, 2 de março de 2011

Parece


Quando me levanto
e é tudo igual
mesmo a esperança,
mesmo o amor
sempre invisível,
sempre sozinho...

Quando me lembro...
e é tudo igual
mesmo a praia,
mesmo o Sol
sempre amarelo,
sempre distante...

Quando me lembro
que é tudo igual
mesmo a revolta
sempre inútil,
sempre pouca...

Sempre que me lembro
que sou o mesmo
e o sorriso
e o meu olhar...

Quando me lembro
que é tudo igual:
as ruas, as árvores,
as estações de metro,
os metros,
a espera e o seu encanto,
o atraso,
a desilusão,
o desencanto...

Quando me levanto
e é tudo igual
mesmo o teu beijo,
mesmo o teu amor
e teu desejo...

escrevo espelhos
e tudo parece diferente.

Sábado, 24 de Junho de 2000
SAC

terça-feira, 1 de março de 2011

Encontro


Estar contigo
a sós
é uma saudade
de não ter saudade,
é um medo
de não ter medo,
é uma verdade
de não ter verdade,
porque me beijas.
Porque me perco.
Porque contigo
não existe espaço
e o tempo...
O que é o tempo?

É a perdição
de nos termos encontrado.

Quinta-feira, 22 de Janeiro de 2004
Campo Grande – FDL – sala 11:04

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Silêncio

Quando estás junto de mim
não sei o que dizer,
só sei o que fazer:
beijar-te.

Por isso junto de ti
não sei como o dizer,
só sei o que fazer:
deixar-te.


Quinta-feira, 28 de Agosto de 1997
SAC