segunda-feira, 6 de julho de 2009

Assim se Faz Um Velho

Assim se faz um velho:
canudos e livros esquecidos,
paredes e lamentações vãs,
salas e anfiteatros desguarnecidos,
tinta de canetas muitas e muitas cãs...

Comboios e autocarros apinhados,
descidas que já subi,
vidas que já vivi,
subidas donde já caí,
vendedores e mendigos calados...

Quilómetros percorridos... porque os fizeste?
Furiosas mulheres... por quem me tomaram?
Lábios de relações inférteis... porque os beijaste?

Tenho o rosto macerado de farsas,
os meus olhos são buracos por onde entraram muitos outros,
a minha boca está fechada, pejada de cicatrizes,
pela minha testa passaram centenas de arados
e as minhas orelhas são covas abertas por todos.

e assim as pessoas
e assim elas, aquelas
aponto com dedo acusador.

e assim me fazem velho:
beijos e beijos esquecidos,
festas e carinhos guardados
nas gavetas por latidos
de cães e sentimentos anafados

pela gula da inconsciência,
pela ingratidão do esquecimento,
pela frieza de um fingir,
pela conversa que não o é,
pela cobardia do não gostar,
pela triste sinfonia de perder uma pessoa
por deixar de sentir um sentimento
por viver do passado, do medo e não do momento.

e assim as pessoas
e assim elas, aquelas
aponto com dedo acusador:
estou velho por causa delas.


Quinta-feira, 18 de Outubro de 1996
SAC

2 comentários:

  1. Pois foi e pois é!
    há anos vi um teatro na Cornucópia com cenas de Carl Valentin que se chamava «E não se pode exterminá-lo?» 1 grd espectáculo!
    E...agora o que fazer com este?
    O povo é mórbido e gosta de ser escravo e, escravizar.
    Lendo o teu poema entrei num repente na "Aparição" do José Régio, q admiro mt.

    ResponderEliminar
  2. Belo elogio, fazer entrar (num repente que seja) na aparição desse nome da literatura portuguesa. Obrigado Ester. Vai acompanhando estas voltas e publicações.

    ResponderEliminar