sexta-feira, 19 de março de 2010

As Pessoas São Como Livros


As pessoas são como livros.
Alguns guardados em estantes,
esquecidos, direitos e escondidos.
Outros no meio da sala,
lembrados, abusados e rasgados.

Mas como qualquer livro,
as pessoas, lembradas ou esquecidas
precisam de alguém...
precisam, de um leitor...

Um leitor que pare.
Essencialmente um leitor que pare.
É tão bom parar. Falar. Rir.

Mas as pessoas não têm tempo.
“Vou buscar manteiga ao super”
“Tenho que limpar o pó”
“Tenho que estudar”
“Vou limpar o pó ao hiper”
“Tenho que ficar só”
“Tenho que limpar”

Tudo serve para não falar.
Tudo se acha belo sem gostar.
Tudo arranjado, sem tempo, sem espaço... é já um costumar...
Mas nada, nada se aprende sem falar.

A razão. Milagre feiticeiro que serve.
Serve aqueles que são vistos e não querem ver.
Serve aqueles que vêem e não querem ser.
Serve aqueles que cegos são e que tudo vêem.
Serve aqueles que são estrábicos e sem sentir...

... ficam a saber que sem o sentimento
a Razão é fria, sem movimento
a Razão não é humana, é um lamento
a Razão é nada, sem sentimento.

Porém, é uma necessidade ser racional para...
racionalizarmos os sentimentos e para...
sentimentalizarmos os raciocínios.

Se formos apenas racionais...
somos apenas irracionais... e sentimos muito mais
porque nascemos racionais,
porque vivemos, melhor, vegetamos racionais
e acabamos por ficar racionalmente
obcecados, sistemicamente absorvidos pelos sentimentos.
Temos fobia pelo espelho em que se reflecte a realidade...
e acabamos por nos sufocar na realidade.

Também não vale a pena sermos sentimentais
apenas sentimentais.
Porquê? Porque é demais.
É demais sermos ao mesmo tempo...
o sentimento, o equilíbrio,
a balança, o fio de prumo,
o quadrante, a bússola,
dos outros, para os outros e em prol dos outros.
E os outros?
Servem-nos a Razão.
Servem-nos à mão.
Servem-nos como se serve uma bola de ping-pong.

Parar para existir.
Parar para folhear, para ver, ler e pensar.
Para que haja empatia.
É tão bom falar o que o outro fala.
Sentir o que o outro sente e às vezes...
só às vezes... ser precioso demente da dor que o outro sente.

Só são livros intangíveis, ilegíveis
aqueles cujo leitor não tem paciência,
tempo, espaço...
E mesmo aqueles que têm cadeado...
cabe ao leitor...
procurar a chave... mas para isso...
é preciso gostar do livro.

Ao ler uma pessoa.
Ao ter tempo e paciência para a ler.
Ao ter espaço para ler dentro de si...
Ao ler...

Apercebemo-nos facilmente das semelhanças
das vivências
das pessoas.


Apercebemo-nos
que por vezes
a culpa é virtude
que beberica nas águas
da saudade.

Que por vezes
saudamos o alaúde
sem este ser dom,
dom de Deus mas sino
de igreja.

Que por vezes
não somos nada
sem parar para ler uma pessoa,
sem escutar o seu sentir,
sem chorar o seu chorar,
sem derramar a sua dor, as suas lágrimas cor de sangue.


Sexta-feira, 13 de Dezembro de 1995
SAC

2 comentários:

  1. ...e os livros são como pessoas. Uma instabilidade mental, mas sempre quietos, ou desfolhados. Alguns sempre abertos para serem lidos e fáceis de deixar entrar. Outros herméticos, sem mesmo sabermos o código de tocar
    à porta, sem campainha e de entrada complicada.
    Outros que param num fim que queremos logo ter o seguinte, como uma adicção. Enfim tudo é igual a tudo pelo igual gesto do adeus como um semi-circulo desenhado abstractamente no vazio do éter.

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  2. Cara Ester,

    Obrigado pelo teu comentário.

    Somos livros, de facto.

    Todos diferentes, mas todos acessíveis, se abertos para o mundo e para os outros.

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